Contardo Calligaris

Psicanalista, autor de 'Hello Brasil!' (Três Estrelas), 'Cartas a um Jovem Terapeuta' (Planeta) e 'Coisa de Menina?', com Maria Homem (Papirus). Morreu em 2021.

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Contardo Calligaris

O que leva Bolsonaro a importar ideias que não tem condição de entender?

Complô do 'marxismo cultural' pode ser atribuído à necessidade de inventar inimigos e a transtorno paranoide de personalidade

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Nos anos 1920, na Itália, na França, na Alemanha, em Portugal, na Espanha etc., muitos consideravam iminente uma revolução socialista.

À vista da agitação daqueles anos, parece que só não houve um tsunami revolucionário porque os soviéticos não quiseram —de fato, sabemos que eles não encorajaram nem os italianos nem os alemães.

Ilustração de quatro elefantes africanos verdes andando enfileirados no meio de uma nevasca
Luciano Salles/Folhapress

Em suma, nos anos 1920, fascismo, nazismo, salazarismo etc. pareciam se opor a um perigo iminente.

Em 1964, em plena Guerra Fria, menos de dois anos depois do episódio dos mísseis soviéticos em Cuba, talvez fosse possível (com uma pitada de paranoia) explicar o golpe militar brasileiro pelo receio de que o país fosse aspirado num projeto comunista internacional.

Mas como imaginar, em 2018, que existiria hoje, mundo afora, um projeto comunista de conquista do poder cultural (a famosa “hegemonia”)?

A ideia de um complô para o triunfo do dito “marxismo cultural” pode ser atribuída 1) à necessidade política de inventar grandes e perniciosos inimigos; 2) a um transtorno paranoide da personalidade; 3) mais provável ao meu ver, ao constante sucesso no Brasil de ideias importadas de outras épocas e outros lugares —“ideias fora do lugar”, desprovidas de pertinência aqui e agora.

Antes de explicar melhor, outro exemplo. O patriotismo é um sentimento que nasce no fim do século 18 e vinga no século 19. Nessa época, ele tem suas razões de ser. Quando os Estados Unidos lutam para conquistar sua independência da Inglaterra, o patriotismo justifica e motiva a luta. O mesmo vale ao longo do século 19, quando Itália e Alemanha, por exemplo, se constituem como nações numa sucessão de insurreições e guerras contra potências ocupantes.

O patriotismo também serviu ao “entusiasmo” bélico necessário na Primeira Guerra Mundial e, logo depois, se manteve como antídoto contra o suposto internacionalismo dos comunistas.

Encurtando uma história que é longa, mas fácil de se reconstruir, o patriotismo “agudo” é um afeto que aparece (ou é convocado) na hora de conflitos decisivos. Fora essa hora, podemos ter carinho e respeito especiais pela história e pelo destino que compartilhamos com outros que falam a mesma língua da gente.

Esse sentimento patriota “normal” implicaria, por exemplo, que, em vez ou antes de se embandeirar, os patriotas nunca sonegassem impostos, por eles se preocuparem com o bem-estar da comunidade; ou ainda que, na pandemia, usassem máscara e evitassem promover aglomerações para proteger a comunidade do contágio; ou ainda que nunca pescassem numa estação ecológica, por se preocuparem com o patrimônio natural da pátria.

Agora, salvo jogo da seleção, por que circular hoje com bandeiras vestidas como capas de Mandrake? O que o patriotismo barraqueiro está fazendo pelas praças do Brasil na segunda década do século 21?

Como o governo não planeja uma nova invasão do Paraguai, o patriotismo de hoje parece ser mais uma ideia fora do lugar, importada de lugares e histórias longínquas.

O conceito de ideias fora do lugar foi criado por Roberto Schwarz (“Ao Vencedor as Batatas”, de 1977, e hoje “As Ideias Fora do Lugar”).

Num texto admirável, Schwarz descobria que, no Brasil escravista do século 19, as ideias do liberalismo europeu, separadas de seu contexto de origem, tornaram-se uma espécie de farsa da modernização, em que, contra o sentido básico da modernidade liberal, por exemplo, o parentesco virava mérito, enquanto o privilégio e o favor passavam a regular as relações entre homens pretensamente livres.

Pois bem. Vivemos hoje um anticomunismo fora de lugar e de época, assim como um patriotismo barraqueiro fora do lugar —e, claro, um liberalismo completamente fora de lugar. A família presidencial é a base do poder; os cargos que, no liberalismo, deveriam ser distribuídos por competência são vendidos ao dito centrão; a ciência, conselheira do racionalismo liberal, é negada e submetida a interesses eleitorais; a liberdade do indivíduo é ameaçada pelo conformismo social e religioso.

Pergunta: qual deslumbramento e qual doloroso complexo de inferioridade levam o presidente e os governantes atuais a importar ideias que eles não têm condição nem de entender nem de respeitar?

Seja qual for a resposta, é difícil não chegar à conclusão que segue —ou as ideias da modernidade estão, hoje, aqui, muito fora do lugar, ou é o presidente que está. E seu governo com ele.

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