Contardo Calligaris

Psicanalista, autor de 'Hello Brasil!' (Três Estrelas), 'Cartas a um Jovem Terapeuta' (Planeta) e 'Coisa de Menina?', com Maria Homem (Papirus). Morreu em 2021.

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Contardo Calligaris

Geração de hoje faz do autorretrato uma forma rebuscada de expressão

Mesmo (e talvez sobretudo) as fotos 'naturais', sem edição, sem filtro e sem maquiagem, são, de fato, a produção suprema

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Um dia, nos anos 1990, em Nova York, meu amigo M. B. me convidou a assistir a uma aula de escrita criativa, administrada por um romancista de sucesso. O escritor nos propôs um exercício: acordar de manhã e ir direto para a mesa de trabalho, escrever sem tomar banho, sem se vestir para o dia e sem escovar os dentes. Era permitido fazer xixi e tomar café preto —café, aliás, só enquanto a gente já estivesse trabalhando.

Ele encorajava uma urgência de escrever que passasse por cima das regras básicas do convívio das pessoas “respeitáveis”. O bafo de ressaca, parecido com o de grandes escritores alcoólicos, de Charles Bukowski a Malcolm Lowry, seria a prova de nosso antinarcisismo: as exigências “bem comportadas” de nossa imagem não interfeririam no nosso trabalho.

Ilustração de pessoa com cabelos curtos e ombros caídos fazendo gesto com a palma da mão levantada, polegar estendido, enquanto os quatro dedos se separam no meio, com dois dedos juntos de cada lado (gesto normalmente acompanhado pela frase "Vida longa e próspera" da série Star Trek). A pessoa está olhando para a tela de um notebook, que é a única fonte de luz do ambiente. Em volta dela, há muitas embalagens usadas, roupas, livros e objetos pessoas amontoados.
Luciano Salles/Folhapress

Obviamente, o aparente desprezo pela imagem social convencional produz uma imagem diferente, mas não menos narcisista: eis que seríamos a caricatura dos poetas malditos e fedorentos, que nada afasta e distrai da tarefa de escrever…

Pensei nesse episódio escutando alguns comentários de professores sobre o ensino remoto, que se tornou hoje comum, da educação básica à superior.

Muito se escreverá sobre os méritos e deméritos disso nos próximos meses e anos (o ensino a distância certamente sobreviverá à pandemia); hoje quero apenas comentar um aspecto de sua prática.

Para os que nunca frequentaram uma aula a distância, lembro que, em tese, a tela do computador apresenta uma visão panorâmica dos alunos, cada um no seu quadrado. Esses quadrados (ou retângulos) podem mostrar o aluno (câmera ligada) ou apenas seu nome com ou sem uma pequena foto.

Segundo os aplicativos, o professor ou a professora podem exercer um certo controle a distância —por exemplo, podem fechar o microfone e talvez até a câmera de um aluno.

Imagine alguém da turma do fundão falando: “estou a fim de encher sua boca de porrada”. Melhor cortar. A turma do fundão é capaz de tudo. Afinal, são crianças ou pré-adolescentes que não estudam nada e
estão loucos para se convencer e convencer o mundo de que eles são adultos. Vale qualquer coisa. Na minha época, havia sempre alguém, no fundão, que, no meio da aula, achava graça em baixar as calças.

Agora, os ensinantes podem cortar microfone e câmera, mas não podem abrir a câmera dos alunos. Isso seria uma invasão de privacidade intolerável. E se o cara estivesse sentado na privada?

No educação básica, muitas escolas impõem que os alunos estejam na aula, digamos, “de corpo presente”, ou seja, de câmera aberta.

Mas aprendi que algumas universidades particulares não exigem o mesmo.

Um eterno problema do ensino particular é o medo de indispor os alunos pagantes: melhor não exigir nada dos rebentos mimados da classe média. Se é isso que eles preferem, que fiquem de câmera fechada.

O professor fala portanto para uma tela que se parece com um cemitério vertical, mas sem as flores.

É possível que a aluna acorde, entre na sala e volte a dormir. Ou então que passe o tempo “textando” nas redes sociais. Tanto faz, que o professor se vire com essas suposições.

Mas há mais uma hipótese, talvez mais relevante e que me trouxe à memória, justamente, aquela aula de escrita criativa que evoquei no começo.

Afinal, os universitários de hoje pertencem a uma geração que aprendeu a fazer do autorretrato uma forma rebuscada de expressão e de presença nas redes sociais. As imagens de si que cada um posta são calculadas, ponderadas e orquestradas. Mesmo (e talvez sobretudo) as fotos “naturais”, sem edição, sem filtro e sem maquiagem, são, de fato, a produção suprema —uma espécie de encenação da “simplicidade” ou da “espontaneidade”.

Para essa geração, é doloroso se expor à câmera sem preparo e sem produção.

Talvez os alunos (ou parte deles) estejam fechando as câmeras porque se mostrar sendo surpreendidos pela necessidade do curso seria uma inversão de valores, visto que, para eles ou elas, o jeito de se mostrar aos outros é muito mais importante do que a tarefa do dia (no caso, escutar a aula).

Essa era a mensagem daquela aula dos anos 1990: sente à mesa de trabalho sem se preocupar com sua aparência.

No ensino básico que frequentei, havia interrogatórios orais, em que a gente respondia de pé, na frente da lousa. Quando foi que alguém achou mais importante se arrumar do que estudar para uma eventualidade dessas?

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