Contardo Calligaris

Psicanalista, autor de 'Hello Brasil!' (Três Estrelas), 'Cartas a um Jovem Terapeuta' (Planeta) e 'Coisa de Menina?', com Maria Homem (Papirus). Morreu em 2021.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Contardo Calligaris

Pacientes não pararam de perguntar sobre o que poderiam se permitir

Perguntas lembravam os anos 1980 e o começo da epidemia de Aids, e eu estranhava que a gente não tivesse aprendido nada

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Para lidar com a pandemia, há três caminhos.

Há os valentões, que explicam a todo mundo que eles não têm medo. Claro, eles são os mais medrosos. Por isso, precisam mostrar o contrário sem parar. Por isso, carregam consigo caixas de remédios milagrosos como amuletos. Por isso, se por acaso se contaminarem e se curarem, eles transformam seu final feliz numa celebração indecente, de polegares erguidos e sinais de vitória.

Há os obcecados, para os quais não existem exceções, só o isolamento absoluto salva.

E há os indulgentes, que se tornam mestres na arte de encontrar racionalizações que justifiquem condutas de risco —eu só vejo amigos que se cuidam muito (pois é, se cada um deles vê amigos “que se cuidam”, multiplique, faça a conta).

Ilustração mostra Jair Bolsonaro olhando dentro da própria calça. Em seu bolso, uma caixa de remédio. Ao fundo uma espingarda emoldurada
Luciano Salles

Valentões, obcecados e indulgentes, todos mudaram radicalmente, nos últimos meses, sua relação com o corpo dos outros (próximos ou desconhecidos) e com o espaço público (a rua, o prédio, as lojas…).

Em poucos casos isso aparece tão claramente quanto na prática do sexo casual.

O isolamento fechou os clubes de suingue e as saunas (mistas ou gays) mundo afora (junto com templos e igrejas).

Eles estão reabrindo. Com precauções —medem a temperaura, pedem uso de máscara, reduziram o número máximo das pessoas no clube etc.

Se estivesse em Roma (e com IgG reagente na sorologia), não teria perdido a reabertura do Olimpo Therme (uma famosa sauna para casados e descasados).

Ao longo desses meses, meus pacientes não pararam de me consultar com perguntas sobre o que eles ou elas poderiam se permitir. Sexo oral contamina? As secreções vaginais e o sêmen contêm o vírus?

As perguntas lembravam, aliás, os anos 1980 e o começo da epidemia de Aids, e eu estranhava que a gente, desde então, não tivesse aprendido nada —uma proibição geral e abstrata só produz cada vez mais condutas de risco.

Por uma razão simples —a fantasia e o desejo sexuais são forças com as quais qualquer negociação é difícil, senão impossível. Dizer “não transe” é tão patético quanto querer limitar as gravidezes indesejadas na adolescência pregando a abstinência sexual.

É preciso, ao contrário, levar o desejo sexual a sério —sempre.

Quase todas as culturas promovem um ideal de autocontrole. O homem é ou deveria ser capaz do domínio de si. É provável que esse ideal de autocontrole surja justamente diante do “mistério” de que nosso desejo sexual é involuntário, ou seja, de que não o controlamos.

Mas é só a cultura ocidental que, a partir do cristianismo, inventou a solução de reprimir diretamente o desejo sexual. Com dois corolários: 1) o que você não consegue reprimir em você mesmo reprima nos outros e 2) vamos fazer de conta que a mulher não tem desejo próprio, mas é a tentadora, responsável pelo descontrole masculino.

Enfim, voltando à reabertura do Therme Olimpo, suspeito que a volta dos clientes no primeiro dia tenha sido sobretudo uma declaração de resiliência à qual me associo —20 séculos de cristianismo não sufocaram a tradição libertária e libertina. A pandemia tampouco conseguirá.

Lembrei-me, justamente, da pergunta de uma paciente poucos dias atrás, “você acha que a máscara pode ser de couro?”.

Nota. Muitos afirmam que o mundo futuro será melhor. Eu mesmo cheguei a pensar que uma pandemia planetária poderia nos curar de nossos miseráveis afetos patrioteiros. Pois bem, acordei terça-feira com este sonho: “É um mundo depois da Covid. Estamos num aeroporto e vamos embarcar. Há uma grande mesa cheia de carimbos. As pessoas não entendem o que é para fazer com eles, mas, verifico que são apenas decorativos, tipo ‘bem-vindos à Austrália’, para enfeitar o passaporte. Uma agente alfandegária nos chama, ela abre uma caixa de papelão que faz parte da minha bagagem e retira um pano que, de um lado, parece um Mondrian (só que de cores mais sombrias), e, do outro, mostra uma paisagem melada com azaleias rosas, céu e águas azuis —parece um quadro de restaurante chinês barato. A funcionária diz que é uma bandeira e que todos os símbolos nacionais são agora ilegais. Eu sei que ela plantou na caixa aquela mercadoria proibida, que não é nossa. Estamos atrasados. O que fazer? Ela me leva num canto e me diz que a bandeira está à venda, e que talvez seja mais fácil eu comprá-la. Puto, enfio a mão no bolso e penso que o mundo não mudou tanto assim”.

LINK PRESENTE: Gostou desta coluna? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.