Contardo Calligaris

Psicanalista, autor de 'Hello Brasil!' (Três Estrelas), 'Cartas a um Jovem Terapeuta' (Planeta) e 'Coisa de Menina?', com Maria Homem (Papirus). Morreu em 2021.

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Contardo Calligaris

Uma carta a meu amigo Caetano Veloso, que, como eu, é do balacobaco

Continuo gostando da matriz libertária do liberalismo

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Caro Caetano, foi muito bom escutar sua entrevista com Bial, no dia 4 de setembro, e agora assistir a “Narciso em Férias”, na Globoplay.

Tem um momento da entrevista com Bial em que você fala que o seu olhar sobre o século 20 mudou.

Nos últimos dois anos, os horrores do nazifascismo e os do socialismo real lhe parecem poder ser considerados e talvez julgados de maneira diferente.

Ilustração de um homem com uma arma de fogo na mão e vestindo capacete e uniforme. Ele está dizendo "Aqui, por aqui!! É pro seu bem."e apontando com o indicador
Luciano Salles/Folhapress

Essa mudança, você atribui à leitura de um autor italiano, Domenico Losurdo, que eu desconhecia até então. Losurdo foi um escritor prolífico; escolhi ler “Contra-História do Liberalismo” (ed. Ideias e Letras) além de escutar entrevistas e depoimentos. E aqui vai o que pensei.

Imagino que nós tenhamos em comum uma paixão libertária, ou seja, a sensação de que existe uma dimensão da liberdade individual que é irrenunciável, e que o coletivo (desde o governo até a turma dos boçais no boteco da esquina) é sempre, em alguma medida, inimigo dessa liberdade. Por isso talvez tenhamos tido, inicialmente, uma simpatia compartilhada pelo liberalismo.

Na minha história, não foi difícil: cresci sabendo que os liberais eram antifascistas irredutíveis, de Luigi Einaudi (segundo presidente da República Italiana, que deixou o jornalismo em 1926, com a chegada do fascismo) a Piero Gobetti (que chegou a declarar que a Revolução Russa poderia ser uma revolução liberal e acabou morrendo em Paris das sequelas de seu linchamento por milícias fascistas) e, enfim, até o meu pai, liberal e partigiano.

Mais tarde, descobri que havia, no dito partido liberal, sinistras figuras dispostas a simpatizar com o próprio neofascismo para se defender do perigo (suposto ou não) socialista ou comunista.

Essa covardia dos liberais dos anos 1960 foi o que me levou para a esquerda.

A esquerda italiana dos anos 1960 era (Gobetti não teria hesitado em dizer) uma boa casa para um liberal.

O Partido Comunista Italiano não tinha grande simpatia pelo Grande Expurgo, ou pelos processos de Praga de 1952.

Se precisasse, uma viagem ao outro lado da Cortina de Ferro bastaria para verificar que não eram só as meias de náilon que faltavam: a pior falta era a daquela liberdade pela qual tenho uma paixão que imagino compartilhar com você.

“Origens do Totalitarismo”, de Hannah Arendt, publicado em 1951, levou tempo para ser lido e entendido, mas acabou sendo um dos livros cruciais na minha formação.

No começo dos anos 1990, meu doutorado era uma interrogação sobre o que permite o horror no comportamento do homem comum quando ele se torna funcionário de um regime integralista ou totalitário, seja ele qual for, nazifascista ou socialista.

No livro que eu li, Losurdo faz uma longa crítica do liberalismo baseada no fato de que liberais famosos e fundadores, como John Locke, possuíam escravos. O que é homólogo a dizer que Engels e Marx não podiam ser socialistas porque viviam graças ao trabalho dos operários da fábrica de Engels.

As coisas são mais complicadas, e a mudança dos modos de produção é lenta. Mais importante: em um vídeo, Losurdo aponta uma diferença entre a violência de Toussaint l’Ouverture (que liberou o Haiti da escravatura e dos franceses) e a violência do general francês que a ele se opunha. Haveria, em suma, uma violência a fim do bem (abolir a escravatura) e uma violência do mal (manter o poder colonial).

Eu sempre fico com calafrio quando alguém defende uma violência “a fim do bem”. Afinal, 60 mil mulheres foram destroçadas, torturadas e queimadas, na Europa da Renascença, tudo a fim do bem: a alma dessas “bruxas” teria assim mais chances de subir aos céus.

Não tem um massacre sem um bem pelo qual ele teria sido decidido.

Não quero ter a paciência para descobrir e lembrar os bens diferentes pelos quais o socialismo real massacrou. Até porque aposto que sempre o que ele realizou de melhor poderia ser realizado sem massacrar ninguém. E deixando ainda a liberdade infinitamente mais solta.

Em suma, talvez não tenha lido Losurdo o suficiente, mas não consigo abandonar a ideia de totalitarismo ou integralismo como efeitos colaterais de qualquer coletivo, que é sempre organizado sobretudo pelo medo da liberdade individual.

E continuo gostando da matriz libertária do liberalismo. Deve ser por isso: embora envelhecendo, eu, como meu amigo Caetano, sou do balacobaco…

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