Contardo Calligaris

Psicanalista, autor de 'Hello Brasil!' (Três Estrelas), 'Cartas a um Jovem Terapeuta' (Planeta) e 'Coisa de Menina?', com Maria Homem (Papirus). Morreu em 2021.

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Contardo Calligaris

O feminicídio não sumirá tão cedo pois é vingança da estupidez masculina

O reconhecimento de uma sexualidade feminina ainda é, para muitos homens, intolerável e ameaçadora

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Leio a excelente reportagem de Camila Brandalise no Universa, no dia 15 de outubro deste ano.

O casal estava separado havia uma semana, mas "na noite de 25 de maio de 2016, [ele] foi atrás dela dentro da Igreja Evangélica Missão e Avivamento, na cidade de Nova Era (MG). [Acrescentou: aparentemente, ninguém, nessa história, está em nova era alguma]. Puxou-a pelo braço e, no meio da conversa, viu uma mensagem no celular da ex com a frase 'te aguardo no mesmo lugar'. Segundo ele, nesse momento, 'bateu um trem doido' e, com uma faca de serra, ele deu três golpes na mulher, na cabeça e nas costas".

Ele comentou: "Sou trabalhador e não posso aceitar de forma alguma uma situação humilhante dessas".

Em 2017, ele foi absolvido pelos jurados, seus pares, por unanimidade. A "legítima defesa da honra" foi e continua sendo o argumento que embasa esse tipo de decisão.

Ilustração de várias pessoas brigando em preto e branco. No meio da confusão, há uma pessoa usando uma máscara de porco rosa, parada com os braços cruzados e dizendo "Em defesa da honra"
Luciano Salles/Folhapress

No STF, o ministro Alexandre de Moraes lembrou que esse argumento fazia do país campeão do feminicídio. "O Brasil ocupa o quinto lugar no ranking dos países que mais matam mulheres no mundo."

Mas tanto Alexandre de Moraes quanto Luis Roberto Barroso foram votos vencidos.

O agressor continua solto, esperando uma eventual votação no plenário do Supremo.

De qualquer forma, parece que não estamos muito longe daquele ano de 1976, quando Doca Street também foi solto após assassinar Ângela Diniz.

Quem duvidasse deveria meditar sobre os jurados de 2017, que libertaram nosso "trabalhador" que não tolera "humilhação" (qual?).

O casal dessa história estava separado havia apenas uma semana. Mas parece que os homens, muitos homens, têm uma certa dificuldade em entender a palavra "separado".

Depois das separações, as mulheres podem ser vingativas, mas raramente o são fisicamente. Em geral, preferem agredir ou mesmo assassinar os homens com os quais estão vivendo ou de quem elas não conseguem se separar.

Os homens, ao contrário, são estranhamente vingativos após as separações. A cada semana, mundo afora (não é uma especialidade nacional), há homens que agridem e matam suas ex-companheiras. E isso pode acontecer dias, mas também (fato surpreendente) anos depois da separação.

Talvez a vingança seja um prato gostoso de se comer frio. Mas o ciúme? Será que ele permanece vivo mesmo em homens que, depois da separação, criaram outro casal e outra família? Que desculpa fajuta é essa, da "honra", na qual os jurados de 2017 pareceram todos acreditar?

Aparentemente, algo incomoda muito os homens na própria ideia da liberdade amorosa de uma mulher —a ponto de um júri autorizar alguém a esfaquear sua ex.

O feminicídio (assassinato de mulheres por elas serem mulheres) não vai sumir tão cedo de nossa crônica, porque ele é uma espécie de vingança da estupidez masculina, inevitável desde que a mulher reapareceu no palco da história.

Reaparecer no palco, aliás, não é metáfora; afinal Maria Louca proibiu os papéis femininos nos teatros dos colégios... Enfim, o ódio pelas mulheres e pela própria existência de seu desejo sexual é enraizado em cada monoteísmo inspirado na Bíblia.

Mas esse ódio aumenta significativamente a cada vez que a mulher, justamente, volta ao palco. Os anos piores sempre foram os da reação contra qualquer movimento de emancipação feminina.

Na segunda metade do século 14, por exemplo, num mundo que começava a se tornar urbano e em que as mulheres começavam a se cultivar, quem sabe a aprender a ler e escrever, ou, "pior ainda", a exercer alguma influência social e política nas cortes, a "razão" europeia inventou de chamar as mulheres autônomas e minimamente livres de bruxas e de exterminá-las.

Faz um século, nos melhores dos casos, que a mulher conquistou o direito de votar. E faz 50 anos, também nos melhores dos casos, que ela conquistou o reconhecimento de uma sexualidade feminina.

É uma visão que ainda, para muitos homens, é intolerável e ameaçadora. A ponto de transformá-los, por exemplo, em assassinos. E de tornar júris inteiros seus cúmplices.

Acabou a caça às bruxas. Muito bem, mas parece que, em compensação, abriu a caça às mulheres, que nem sequer precisam ser bruxas.

Nota. Minha conta de Twitter foi hackeada e, ao que consta, apagada. Espero que o Twitter resolva o "mistério". Sem isso, logo anunciarei eventual nova conta.

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