Contardo Calligaris

Psicanalista, autor de 'Hello Brasil!' (Três Estrelas), 'Cartas a um Jovem Terapeuta' (Planeta) e 'Coisa de Menina?', com Maria Homem (Papirus). Morreu em 2021.

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Contardo Calligaris

Qualidade moral de nossa conduta depende da capacidade de agir sozinho

Votar segundo consciência significa deixar de fora, quanto mais possível, o besteirol coletivo (pátria, Deus, família, partido)

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Em 2017, muitos, na África do Sul, pediam a renúncia do presidente Jacob Zuma.

O Parlamento poderia manifestar sua desconfiança e forçar Zuma a renunciar.

O voto foi postergado, mas o que importa é que a Comissão Episcopal Justiça e Paz publicou uma exortação aos parlamentares, pedindo que eles votassem "segundo consciência, levando em conta o bem comum e não interesses parciais e sua sobrevivência política".

Não vou perder tempo tentando definir o que seria o bem comum. Sou utilitarista: para mim, o bem comum é o maior bem-estar possível para o maior número possível.

Claro, isso nem sempre é um cálculo fácil, mas a definição é suficiente para orientar qualquer debate útil.

Isolar e envergonhar "interesses parciais" e, entre eles, para os eleitos, a tentativa de garantir sua própria sobrevivência política, tudo isso é óbvio. Ou deveria ser.

Resta explicar por que me lembro da nota de Justiça e Paz, que ainda me parece ser uma sugestão perfeita em época de eleições. Tomada como encorajamento a todos os eleitores, ela não diz contra ou a favor de quem votar, mas pede, no meu entender, o essencial: "Votem segundo consciência". O que isso significa?

Homem amarelo nu usa urna eletrônica, atrás dele, diversas peças de roupa roxas
Luciano Salles

Primeira e rapidamente, significa que nosso inconsciente tem vários méritos (pode inspirar nossas criações, invenções e delícias), mas, na hora de votar, melhor deixá-lo descansar. Não votemos porque tal candidato é chulo como aquele tio que nos dava uma bala a cada domingo e cujas fanfarronices produziam uma leve (ou grande) excitação sexual na nossa infância.

Ou seja, não votemos, se possível, fazendo do nosso voto uma bengala para nossos sintomas familiares ou para nossas fantasias.

Tudo bem.

Votar segundo consciência significaria, então, votar nos candidatos que representariam nossos "valores"?

Esse é o ponto mais delicado: votar segundo consciência não significa votar nos candidatos que representariam nossos "valores". Ao contrário, votar segundo consciência significa votar moralmente, ou seja, absolutamente sozinhos e sem referência a nenhuma dimensão coletiva.

Para explicar, uma lembrança. Desde os anos 1950, na Itália, frequentei a seção eleitoral onde meus pais votavam.

Eles queriam que, de alguma forma, eu me familiarizasse com o processo e o incluísse entre meus futuros direitos "naturais". Mas, mesmo pequeno, quando provavelmente ninguém se oporia a deixar uma criança acompanhar um dos pais na cabine, eles nunca deixaram que eu entrasse.

Parecia ridículo: nas conversas de cada dia, antes das eleições, não escondiam suas preferências (que, aliás, podiam não ser as mesmas para ambos). Então por que eu não poderia vê-los marcar a cédula?

Obviamente, o caráter secreto do voto é uma garantia de que a preferência não possa ser verificada e portanto vendida.

Mas aquela exclusão era algo mais: parecia que eles quisessem me ensinar que votar era um verdadeiro ato moral e, como tal, necessariamente solitário. Agir (ou votar) segundo consciência significa deixar quanto mais possível o besteirol coletivo (pátria, Deus, família, partido) de fora —se possível, sem voz.

E por que isso? Simples.

Em ordem cronológica, Deus, família e pátria são, em nossa história, as grandes matrizes do mal e da imoralidade: é em nome desses três espantalhos que a humanidade se permitiu cometer seus piores crimes.

O partido veio se juntar a essa lista no século 20, mas, em pouco tempo, ele recuperou o tempo perdido, competindo com os outros valores capazes de autorizar o pior.

Os ditos "valores" são sempre coletivos. Por isso, agir ou escolher em nome de valores é quase sempre profundamente imoral. A qualidade moral de nossa conduta depende de outra coisa: ela depende de nossa capacidade de agir ou escolher sozinhos, a partir de nosso foro íntimo.

Agora, sem ilusões: nosso foro íntimo é influenciado por nossas crenças, nossa fé ou nossa descrença, nossa cultura ou ausência da mesma etc.

Ou seja, ninguém age ou escolhe sem que a imoralidade de seus "valores" cobre seu pedágio, mas há uma diferença entre escolher por referência a valores abstratos (Deus, pátria, família, partido e análogos) e escolher diante do concreto, avaliando, sozinhos, antes de convocar as bestas coletivas, o que nos parece justo e o que nos parece errado.

Então, mais um esforço para sermos morais: votemos segundo consciência, não segundo os "valores".

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