Contardo Calligaris

Psicanalista, autor de 'Hello Brasil!' (Três Estrelas), 'Cartas a um Jovem Terapeuta' (Planeta) e 'Coisa de Menina?', com Maria Homem (Papirus). Morreu em 2021.

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Contardo Calligaris

Série 'The Crown' permite interrogar de uma maneira singular as falhas paternas

A frieza de Elizabeth é provavelmente sua melhor qualidade para o trabalho que se espera dela

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Aproveitei uma semana de repouso forçado para assistir à quarta temporada de “The Crown”, de Peter Morgan (Netflix).

De todas as séries em cartaz, a de Morgan é a mais recompensadora. Da primeira temporada até a mais recente, você pode reviver a segunda metade do século passado e procurar nela algumas razões do presente. Ou, então, pode se interessar pelos Windsors, que, afinal, são o epítome da família real “moderna”. Ou, ainda, você pode se apaixonar pelos dramas dos “número dois” (sempre parecem lamentar não ter nascido número um —o que surpreende, porque, no trabalho da realeza, quem paga o preço é quase sempre o número um).

Ilustração de uma homem vestindo apensas cueca e meias sentado em cima de uma capa vermelha. A capa é de uma pessoa com cabelos curtos grisalhos que está de costas na imagem. Há uma espada amarela posicionada horizontalmente sob a cena, perto dos ombros da pessoa que veste a capa, e uma coroa amarela que está sobre sua cabeça
Luciano Salles

Mas não é só por isso que “The Crown” se tornou a série mais falada. Tome qualquer problema de casamento na realeza: ele aparece sem complicações inúteis. Na realeza, ninguém dirá que está “nervoso” por causa de uma insegurança de trabalho ou por falta de uma casa de campo para passar o domingo. Ou seja, os problemas não são camuflados.

Esse imediatismo dos dramas familiares faz com que todo o mundo se identifique com facilidade e que todos os nossos dramas, menores ou maiores, possam ser reatualizados e revividos pelas histórias da realeza.

Nessa vasta gama de aventuras do sentimento, uma em particular parece presente aos olhos de meus pacientes.

Em geral, a psicologia dinâmica adora culpar as mães, quer seja por excesso ou por falta de amor e de cuidado. Mas a série permite interrogar de uma maneira singular as falhas paternas. Por exemplo, era fácil pensar que os irmãos Windsor (Margaret, Charles, Anne), independentemente da geração, fossem rabugentos e sofressem de uma certa incapacidade de expressar sentimentos por causa da frieza da própria Elizabeth. Ora, a frieza de Elizabeth é provavelmente sua melhor qualidade para o trabalho que se espera dela. E talvez o caráter rabugento (provocador no caso de Margaret) mereça uma procura de outra causa.

Sem complicar, tomemos o caso de Charles. Charles quer ser rei um dia, mas não está disposto, como diria a mãe dele, a se comportar como um rei. Ou seja, ele não quer desistir de Camilla em prol de
Diana, a mulher com quem ele casou. Opera sobre ele uma espécie de maldição que já operou sobre o tio dela —que, como se sabe, renunciou ao trono para casar com uma americana divorciada.

Você pode achar tudo isso um pouco anacrônico, mas eu poderia facilmente defender a ideia de que você não deveria ter acesso ao trono da Inglaterra (sem contar o império inteiro) sem ser capaz de nenhuma renúncia. Como é que os ingleses vão acreditar num rei que nunca se revela disposto a prezar seu capricho um pouco menos do que o grande desejo da vida dele: tornar-se rei.

Oscar Wilde, o grande escritor irlandês entre os séculos 19 e 20, dizia que a única diferença entre o capricho e o desejo é que, em geral, o capricho dura muito mais. Ele devia ter aprendido isso com o príncipe de Gales daquela época.

Charles está sempre muito preocupado em deixar sua “marca própria”, no mundo e no seu reinado futuro. É legitimo, mas também é um pouco moderno e narcisista demais para alguém que se destina a ser rei.

Deixar sua marca própria seria o quê? Não renunciar à amada Camilla?

Mas de onde viria então a estranha pretensão de Charles? O que o animaria a não renunciar a Camilla? A hipótese mais provável é que essa seja a verdadeira e única herança paterna que Charles recebeu.

Philip, o pai de Charles que foi escolhido por Elizabeth e muito bem aceito pela família real, levava para o casamento apenas sua nobreza e seu charme. Ótimo, não é preciso de nada mais do que isso. Mas é bem possível que na cabeça dos filhos do casal real e de Charles em particular, a história de Philip se
resuma ao fato de que ele casou com Elizabeth como um trabalho ao qual se dedicou a vida inteira. Talvez tendo “namoradas” de vez em quando, mas nunca imaginando nem sequer a possibilidade de “cair fora” e renunciar à tarefa em troca de um amor.

Talvez esta fosse, para Charles, a coisa mais importante: não passar pela mesma renúncia pela qual o pai passou para se tornar rei.

De qualquer forma, tudo indica que se tornar rei é uma coisa que não se planeja. Olhe os que se deram bem (Elizabeth). E não esqueça o triste herói de “O Homem que Queria Ser Rei”, de Rudyard Kipling.

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