Contardo Calligaris

Psicanalista, autor de 'Hello Brasil!' (Três Estrelas), 'Cartas a um Jovem Terapeuta' (Planeta) e 'Coisa de Menina?', com Maria Homem (Papirus). Morreu em 2021.

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Contardo Calligaris

Canetas transformaram a trivialidade em ritual no meu círculo familiar

Escrever é sempre conferir ao acontecimento a dignidade do registro

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Meu pai usava caneta-tinteiro, mas de um jeito bastante peculiar e só quando ele sentava à mesa dele. Para longe da mesa, ele levava uma esferográfica descartável, no bolso superior esquerdo do colete.

No meio da escrivaninha dele, estava um conjunto de prata e cristal, que incluía um prato para pequenos papéis e talvez selos, dois frascos para as tintas (os quais, por serem transparentes, tornavam as tintas reconhecíveis —azul escura e vermelha) e, plantada no meio, uma bainha protetora que se confundia com uma pedra semipreciosa, o que dava ao conjunto um aspecto, ao mesmo tempo, de péssimo gosto e mágico, como se a caneta fosse Excalibur, fincada numa montanha e disposta a ser solta só pela mão do futuro rei Arthur (que a pedra e a espada reconheceriam).

Na época, escrever era uma tarefa constante no trabalho de um médico. Não havia computador de mesa, obviamente, e, além das receitas, as anotações do médico, a cada consulta, eram cruciais.

Ilustração de uma pessoa com cabelos esvoaçantes cercada por canetas, que têm o tamanho dela
Luciano Salles/Folhapress

Sempre pensei que a caneta-tinteiro do meu pai estivesse quebrada, porque ele sequer tentava carregá-la de tinta (o que deveria acontecer por um pistão que, à primeira vista, parecia funcionar normalmente). Mas, como disse, ele sequer tentava: servia-se da caneta-tinteiro como se fosse uma pena das antigas —as que a gente molhava na tinta a cada duas ou três palavras.

Só que, no caso, o mesmo mecanismo que, numa caneta-tinteiro, garante o fluxo regular da tinta também fazia que a pena, uma vez molhada, durasse mais e permitisse escrever facilmente por duas ou três linhas.

Em suma, ele usava sua caneta-tinteiro como uma superpena das antigas e, claro, conseguia conciliar o cuidado para evitar os borrões (gotas de excesso de tinta) com uma reserva suficiente para escrever sem ter que estar molhando a pena o tempo inteiro.

Enfim, gostava de vê-lo escrever desse jeito; era uma arte da qual só soube depois da morte dele, que ela não correspondia a nenhum problema real: a caneta Excalibur não tinha nenhum defeito.

Completando o quadro familiar: meu irmão escrevia com esferográficas, de tipo recarregável, que ele terminava e para as quais comprava recargas.

Minha mãe escrevia com esferográficas descartáveis; ela substituía a caneta assim que se formasse uma acumulação de tinta quase sólida, presa na esfera da ponta.

Também ela disseminava as canetas, para que cada gaveta, arquivo ou agenda tivesse uma caneta própria, imediatamente pronta ao uso.

Meu avô (materno, o único que conheci) usava três esferográficas bastante luxuosas, de prata, cada uma com uma história (presente recebido na primeira comunhão ou no fim do ensino médio ou no noivado etc.). Com essas canetas, ele se debruçava sobre La Settimana Enigmistica (a semana em enigmas), o equivalente italiano de Coquetel (na verdade, Coquetel era o equivalente brasileiro da Settimana).

Da escrita dele, o que me sobra é a lembrança do silêncio: a esfera rolando sobre o papel, o suavíssimo toque metálico da esfera ou talvez do próprio mecanismo da caneta, talvez o cheiro também suave das balas que ele chupava enquanto pensava e resolvia enigmas.

A escrita era sempre parte do encanto —como se, em cada caso, a caneta e os gestos transformassem a trivialidade cotidiana em algo sagrado, um rito. Nada de mais, escrever é sempre um pouco isso: conferir ao acontecimento a dignidade do registro.

E eu? Eu escrevia com caneta-tinteiro, desde muito cedo.

Ao longo do tempo, os incidentes (bolso da camisa ou do paletô encharcados de tinta) foram raríssimos.
Em compensação, estava com o indicador, o médio e às vezes o polegar da mão direita cronicamente manchados de tinta azul. Não eram manchas intensas; pareciam-se mais com um halo —aquele amarelado de resíduo de combustão na ponta dos dedos dos grandes fumadores.

Mais ou menos dois anos atrás, decidi reunir uma coleção (idealmente completa) de todas as canetas com as quais escrevi na minha vida.

Aquelas às quais eu fui fiel não foram tantas, mais ou menos uma dúzia.

Como me veio a ideia?

Foi porque uma (Montblanc Slimline 1122) sumiu de uma gaveta. Claro, pensei que tinha sido roubada —embora não valesse grande coisa.

Foi a falta de uma caneta que me deixou com a vontade implacável de tê-las todas de volta. Ou talvez de estar de volta para o começo da minha vida, com todas as canetas e as tintas.

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