Contardo Calligaris

Psicanalista, autor de 'Hello Brasil!' (Três Estrelas), 'Cartas a um Jovem Terapeuta' (Planeta) e 'Coisa de Menina?', com Maria Homem (Papirus). Morreu em 2021.

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Contardo Calligaris
Descrição de chapéu Governo Trump

A política de Trump foi um showbusiness de sucesso e de grande competência

A política se orientou mais para matar do que para, eventualmente, convencer

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Houve uma espécie de alívio generalizado quando entendemos que Donald Trump perderia a reeleição.

Muitos esperavam que ele perdesse não tanto pela mediocridade de suas ideias quanto pelo caráter boçal de seu estilo de governo. Ou seja, a maneira de maltratar e fritar até os mais próximos de seus próximos, sua diplomacia de guerra permanente para não dizer uma guerra diplomática em que era possível o presidente, sem nenhuma mediação de conselheiro algum, sem ter interpelado o Congresso nem mesmo tangencialmente, nas altas horas da madrugada, de repente ameaçar os fundamentos básicos da própria convivência pacífica entre as nações.

Num primeiro momento, era como se esse comportamento sem exemplos prévios, sem pontos de referência (“guidelines”), sempre exposto ao capricho individual de um homem solitário na noite, arriscasse nos deixar perdidos. E, de fato, era um comportamento constantemente ansiógeno. Parecia que sua motivação principal era deixar o eleitor americano em necessidade urgente de uma consulta psiquiátrica.

um astronauta lança um avião de papel em meio a vários papéis flutuando
Ilustração de Luciano Salles para a coluna de Contardo Calligaris de 18 de fevereiro de 2021 - Luciano Salles/Folhapress

Agora, essa situação tinha suas contrapartidas. Por exemplo, os amigos acordavam no dia seguinte, corriam para as redes sociais e elas já estavam inundadas pelos desaforos presidenciais da noite anterior.

Aí as pessoas repercutiam, comentavam, compunham memes de todo tipo e também telefonavam para seus amigos para tentar entender qual era a significação social ou simplesmente humana daquilo que estava acontecendo.

Enfim, o fato é que, quando se entendeu que Trump tinha perdido, circulou uma espécie de grande onda de alívio. A realidade podia ter sido uma luta, mas não para sempre. Era possível voltar aos colunistas aos quais nós estávamos mais acostumados, seres mais razoáveis, não dispostos a desencadear um conflito mundial por semana. Aliás, os colunistas não dispostos a desencadear um conflito mundial por semana, que geralmente escrevem textos mais compridos que um tuíte, voltaram a circular na internet.

Era como se de repente, no Facebook, uma conversa de histórias em quadrinhos brutais, tipo “zab bing bang bung klung” tivesse sido substituída pela conversa pausada e a sotto voce de um university club: “Você se deu o tempo de considerar se por acaso... Você viu a ironia da situação... No fundo o presidente estava dizendo coisas muito próximas das que...”.

Agora, tivemos que esperar uma semana e, inevitavelmente, começou a bater a saudade. Aquela coisa de levantar, ligar a máquina do café e olhar para o celular com uma certa desconfiança: será? Mais uma semana e essa desconfiança se tornou um tédio: a imprensa está um saco.

Em um mês, os leitores com mais afinco de notícias políticas, debate político americano, “novidades administrativas” entre Albany e Nova York, estavam se perguntando se não estava na hora de migrar para algum site extremista de direta ou de esquerda, tanto faz, enfim, de alguém que me acolha de manhã cedo com a certeza absoluta de que Hillary bebe sangue a cada dia. E participa de um vasto movimento conspiratório que quer transformar o mundo numa cabala de abuso infantil. Essa é a ponta do iceberg do vasto universo imaginário QAnon.

O que isso demonstra? 1) A política de Trump foi um show business de tremendo sucesso e portanto de grande competência. Ele podia nos aterrorizar pelas idiotices que inventaria, mas não entediava ninguém, e isso era a coisa que mais importava. 2) Existe uma relação entre não entediar como estratégia política e o fato de pôr no centro da cena pública não as ideias (nem sequer as minhas) mas a solidão brutal da minha pessoa as 3h da manhã enquanto repenso o mundo e me sirvo um sorvete.

Preferimos o enfrentamento entre “personagens” a um debate entre ideias. Claro, o problema com a política das personagens é que elas se interessam muito mais pelo assassinato do que pelas discussões, pelo golpe de Estado do que pelo debate eleitoral. No fundo, é um movimento que está no ar há muito tempo. Como dizia Hofstadter em seu ensaio seminal de 1964, estamos diante do “estilo paranoide na política”, não só americana. E, de fato, a política se orientou mais para matar (John Kennedy, Martin Luther King, Bob Kennedy, Herzog etc.) do que para, eventualmente, convencer.

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