Neste ano, o Comitê Paralímpico Internacional agiu. Advertiu as retransmissoras dos Jogos quanto ao despropósito de um discurso que vai contra seus valores de inclusão. Funcionou. O banho narrativo da superação foi atenuado.
A mão se estende na direção de quem patina parado, almejando-lhe condições de ousar a aposta no potencial de seus próprios passos. É que, sem um palco social justo, enfrentar desafios pode ser como patinar desatinadamente no mesmo lugar; na boa hipótese, salvando-se do vexame da queda.
Mas isso não impede olhares de soslaio que destilam menosprezo e instilam vergonha, erodindo e inibindo a estima de si. Em quaisquer esferas da vida, simbolicamente, é a existência de todo um contingente de párias fora do páreo que vem denegada pelas dramáticas exceções à regra, aquelas celebradas nas fábulas voluntaristas de superação.
Para todo sucesso social, garante-se assim uma boa dose discursiva de presunção moral, a da dita honra ao mérito, lá onde, no nebuloso palco injusto, o êxito começa pouco honroso, posto que munido de antemão da habilidade confiante de patinar a passos largos. O roteiro centrado no mérito individual oculta bem o que lhe fornece crédito: as condições de possibilidade justas do palco paralímpico que, afinal, muitos preferimos não considerar nem louvar, enlevando-nos prazenteiramente no tênue orgulho das conquistas.
O enlevo (pasme!) alcança também os espectadores do contingente de párias inibidos, admirados e convencidos: “Faltou-me o dom, a sorte ou apenas não ter desistido nunca”. Logo, a ação esportiva não é desprovida de política, nem imune a sentimentos morais. Sob os sentimentos já anotados, os imediatamente referentes a mérito e senso de justiça, há outros, misturando palco social e bastidor existencial.
Atenção! A despeito de sentimentos soarem naturais, a historicidade os atravessa e constitui, fazendo-os volúveis, mesmo se haja persistências. Dó, comparecendo no olhar piedoso que ainda recai sobre a pessoa com deficiência, remonta à virtude da compaixão pelo sofrimento alheio e à disponibilidade para a ajuda, como quer a milenar caridade cristã.
Só que a caridade piedosa erra o alvo: presume que onde há deficiência deva haver sofrimento inconsolável. Vista como digna de pena, a limitação em que é instalada diminui e humilha a pessoa. De uma amiga estimada: “Até ler sua coluna, nunca tinha pensado nisso. Não que eu seja ruim, mas há coisas que não me mobilizam. Nunca tive a menor vontade de ver Paralimpíadas”.
Ouço o eco da voz suave do filósofo Paul Ricoeur constatando o estigma: a sociedade preferiria ignorar as pessoas com deficiência, porque elas “constituem uma ameaça surda, uma lembrança inquietante da fragilidade, da precariedade, da mortalidade, constituem um insuportável memento mori”.
Quando a pandemia dispensou o estigma impondo o insuportável com seu vírus invisível, foi com deferência jamais vista que Tóquio trouxe ao palco olímpico o acolhimento à nossa vulnerabilidade. Afinal, a insolência que a ignora ou a trivializa corrói o cuidado à vida, minando a saúde, a começar pela mental.
Testemunhamos uma inversão existencial: os Jogos Olímpicos espelharam os Paralímpicos. Resultará disso menos estigma, mais inclusão e menos insolência face à precariedade que nos constitui a todos?
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