Cristiano Barreira

Cristiano Barreira é psicólogo e professor associado da USP na Escola de Educação Física e Esporte de Ribeirão Preto, a EEFERP-USP, onde foi diretor (2017-2021).

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Cristiano Barreira
Descrição de chapéu Tóquio 2020

Narrativa da superação nas Paralimpíadas aprisiona identidade do atleta

Cacoete quase insuperável é repetido à exaustão por locutores e comentaristas

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Iniciados os Jogos Paralímpicos, podemos estar certos de uma coisa: seremos banhados por narrativas de casos extraordinários de superação vividos, consagrados e medalhados pelas conquistas dos atletas. Presos a um cacoete quase insuperável, locutores, comentaristas e jornalistas repetem à exaustão o fio narrativo que reveste todo sucesso esportivo.

Afinal, há de se concordar que nenhum triunfo esportivo é estranho à narrativa da superação. Mas você já se questionou o que oculta o fato de que, no paradesporto, esse script seja tão acentuado e insistente? Talvez isso tenha muito a dizer sobre nós mesmos.

Muitos paratletas replicam o cacoete do discurso da superação - Yasuyoshi Chiba- 10.set.16/AFP

Como todo atleta olímpico, os paralímpicos competem em suas categorias, seguindo também as classificações de suas funcionalidades. Mesmo que seus critérios nem sempre sejam inteiramente consensuais, essas classificações visam assegurar que haja disputa esportiva. Em outras palavras, quer-se garantir que as variações entre deficiências similares não caracterizem vantagens de uns sobre outros. Logo, o que diferencia internamente o paradesporto o iguala ao desporto convencional naquilo que mais importa: as condições de equivalência para a disputa.

Dourar, pratear ou bronzear a superação do paratleta, temperando-a com uma carga dramática que usualmente não é dedicada ao atleta convencional, parece atender a um desígnio nobre: o apelo à vitória biográfica contra o limite da deficiência. O irônico (ou trágico) desse tempero a mais é que ele destina o paratleta a ter a identidade aprisionada precisamente por aquilo que, em tese, tanto se celebra como superado: a deficiência congênita, ou adquirida, tratada como uma limitação que encontra no esporte o símbolo e a ação que a “desmentem” no êxito do atleta. A mascarada mal se sustenta e vem à tona sua ambivalência.

É verdade, muitos paratletas replicam o cacoete aprendido no discurso da superação. Todavia, a trajetória esportiva que os levou até o nível olímpico há muito legou ao apagamento uma limitação que, enquanto tal, na experiência do paratleta, não faz mais parte de seus gestos vividos, esquecendo-se em sua ação. Explico. É que o esporte adaptado faz bem o que a sociedade como um todo faz muito mal: adapta o ambiente e suas normas para que a existência da pessoa deixe de se definir pela limitação e passe a se determinar por suas potencialidades.

Assim, no alto rendimento, o atleta não disputa a mesma prova com o paratleta porque haveria uma vantagem injusta. Por outro lado, a sociedade não cansa de injustiçar quem tenha deficiência. As barreiras de toda sorte, físicas e morais, ao contrário do que faz a adaptação esportiva, reafirmam as limitações e reduzem as possibilidades de participação na vida pública, subtraindo-lhe dos espaços de atuação no, com e pelo bem comum.

Com isso, excluem às margens da sociedade quem, durante os Jogos Paralímpicos, é exaltado como indivíduo extraordinário. Sobre esse pano de fundo, vê-se que a nobreza pretensamente elogiosa do conto do self-made man pode esconder algo perverso, ainda que involuntário e, talvez, tanto mais por isso.

Enquanto você assiste aos Jogos, lembre-se: a apreciação da superação só é possível quando a excelência esportiva expressa a excelência ética —a capacidade humana de inventar condições sociais justas para se honrar a existência.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.