Cristovão Tezza

Ficcionista e crítico literário, autor de “O Filho Eterno” e “A Tirania do Amor”.

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Cristovão Tezza

As sombras de Jorge Amado

Destrinchá-lo é destrinchar boa parte de como o Brasil vê e se vê

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Em 1996, presenteei um professor italiano em Florença com um exemplar da edição italiana de "Gabriela, Cravo e Canela", de Jorge Amado, único autor brasileiro que encontrei nas livrarias. Ele leu em dois dias, fascinado. Brincou: "Quero ir ao Brasil casar com a Gabriela".

Anos depois, num evento na China, um diretor da universidade de Xangai me confessou que, quando jovem, adorava as obras de Jorge Amado.

"Não pela ideologia", esclareceu. "Era pelas cenas de sexo", uma novidade maravilhosa na pudica China maoísta.

Para a minha geração, Jorge Amado foi inescapável. Milhares de brasileiros descobriram a literatura pelo seu poder fabulativo, numa voz que sintonizava a língua brasileira com tempero transgressor.

No seu primeiro momento, expressou a indignação pelas injustiças do país, no espírito dos anos 1930. Em seguida, na ditadura Vargas, assumiu uma rígida militância stalinista, que, obediente, produziria obras horrendas como "O Cavaleiro da Esperança", hagiografia de Luís Carlos Prestes, "O Mundo da Paz", sobre as maravilhas da vida soviética, e "Os Subterrâneos da Liberdade", amostra tupiniquim do realismo socialista.

Ilustração de Vânia Medeiros para a coluna de Cristóvão Tezza de 30.dez.2018.
Vânia Medeiros

Pagaria um alto preço por essa aderência total ao stalinismo, sombra de que jamais se livrou, mesmo depois de romper, tardiamente, com o passado partidário e escrever, a partir de "Gabriela" (1958), algumas obras-primas da cultura brasileira.

A grande fase do escritor que o consolidaria como um imbatível best-seller (mais de cem milhões de exemplares vendidos) e o único nome universal da clássica literatura brasileira do século 20, jamais encontraria sossego crítico. Condenado à desgraça pelos comunistas, encontrou uma resistência surda da universidade brasileira que cresceu a partir dos anos 1970.

O velho beletrismo condenava-o por "escrever mal", e o surgimento dos estudos estruturalistas criou um sapatinho teórico formal, em busca de uma Cinderela literária que não havia em lugar algum, e muito menos na exuberância de Jorge Amado.

No capítulo seguinte, a ascensão dos chamados estudos culturais descia o porrete no papel da mulher de seu universo ficcional, transbordante de sensualidade feminina desfrutável.

Em outro momento, na cíclica reemergência da questão racial brasileira, condenou-se o seu suposto culto de uma falsa democracia racial e o elogio da miscigenação implícitos na sua obra, sob um radicalismo que chegou a identificar o simples conceito de miscigenação com genocídio (o que, levado ao pé da letra, significa deletar o Brasil).

Finalmente, a espiral de volta à origem, ressurge a condenação puritana do sexo, sempre ele: num elo que põe no mesmo lado do balcão o zeloso stalinista e o fanático religioso, ataca-se a insanável "imoralidade" da sua obra.

Relembrei este roteiro dos fragmentos de minha memória afetiva de leitor ao devorar as mais de 600 páginas de "Jorge Amado - Uma Biografia", de Joselia Aguiar (Todavia), a primeira biografia de fôlego escrita sobre este escritor que, por si só, sintetiza questões cruciais da história literária brasileira e dos nossos impasses culturais.

Amparado numa sólida pesquisa, que se traduz com leveza jornalística, o livro percorre factualmente a vida de Jorge Amado, tecendo a complexa rede de variáveis que deram ao escritor a sua extraordinária dimensão.

Não é —e certamente não foi essa a intenção da autora— uma obra escrita com foco na reflexão crítica da obra amadiana, embora esta reflexão apareça espelhada através do levantamento das opiniões contraditórias sobre cada um de seus momentos literários.

É, com rigor, um painel biográfico generoso, e que será ponto de partida e pano para manga de muita interpretação, agora mais a partir de fatos do que de preconceitos.

Um deles, que o livro desmonta, é a ideia de que, sem o apoio do Partido Comunista, ele não teria a importância que teve. Aos 30 anos, bem antes da militância em que mergulharia, Jorge Amado já era publicado pela Gallimard, na França (recebendo elogios de ninguém menos que Albert Camus), e pela Knopf, em Nova York, para citar duas das mais importantes editoras do mundo.

Sobre Jorge Amado, as críticas moral, estética, ética, política e cultural são como que inseparáveis. Destrinchá-lo é destrinchar boa parte de como o Brasil vê e se vê --não se pode fazer elogio maior ao poder da sua ficção, embebida de um forte vitalismo otimista, que percorre sua obra inteira e que, como alguns de seus personagens marcantes, recusa-se a morrer.

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