Os sinos dobraram para Ernest Hemingway há exatos 60 anos. Implacável na escrita, cultor do laconismo, o autor de "Adeus às Armas" editou a própria vida com um ponto final. Deixou uma obra influente, que marcou, inclusive, o modo de se fazer jornalismo, e a ideia de que uma existência de aventuras é condição para alimentar a literatura. Deixou também alguns livros póstumos e ao menos três coquetéis.
O death in the afternoon recebeu o nome de um de seus textos de não ficção, que retrata o universo das touradas. A receita está no almanaque "So Red the Nose", de 1935, em que escritores sugerem misturas alcoólicas relacionadas a suas obras. O drinque de Hemingway é direto como seus contos. Absinto e champanhe. As doses são o segredo.
Foi específico nas recomendações. O champanhe deve cobrir o absinto até a bebida atingir uma opalescência leitosa. E então deve-se tomar de três a cinco drinques, lentamente.
Presente no mesmo livro, Theodore Dreiser foi apocalíptico na medida. Seu american tragedy cocktail leva nitroglicerina, pólvora, gasolina e um fósforo aceso. Bom para o inverno, mas pouco recomendável.
Hemingway começou a beber absinto em Paris, destino de muitos que fugiram da proibição do álcool nos EUA. Por ironia, a fada verde, como também é conhecida a bebida, estava vetada na França e em quase todo o mundo. Escreveu, então, sobre a venda clandestina do temido destilado para um jornal canadense. E colocou o absinto na voz de um de seus personagens mais conhecidos, o Robert Jordan de "Por Quem os Sinos Dobram": "Aquele líquido opaco, amargo, cuja alquimia entorpecia a língua, afagava o cérebro, esquentava o estômago e mudava as ideias".
Tinha ido à capital francesa depois de um período de convalescência. Era motorista da Cruz Vermelha na Primeira Guerra quando foi atingido por estilhaços de uma bomba austríaca. Em seu "Paris é uma Festa" toma kirsch e lembra com ternura os licores de ameixa e amora oferecidos por Gertrude Stein em seu magnífico apartamento.
Para o Nobel de Literatura, explosivo em suas libações, beber pouco era bobagem. Conta-se que tomou 16 daiquiris numa noite, no Floridita, seu bar favorito. E não era um daiquiri qualquer, mas um papa doble, com o dobro de rum e nada de açúcar. Quem o preparava era o catalão Constante, rei dos bartenders na Habana Vieja. Ao contrário da lenda, Hemingway não gostava muito de mojitos, até porque era diabético. O saloon cubano La Bodeguita del Medio forjou essa história para atrair clientes. Tá valendo.
Outra das invenções etílicas do escritor é o green isaac. Está receitado em "As Ilhas da Corrente": "Quando Eddy veio à popa com o drinque alto e gelado feito de gim, suco de limão, água de coco e gelo picado com o suficiente de Angostura para dar uma cor rosa enferrujada, ele segurou a bebida na sombra para que o gelo não derretesse e olhou para o mar".
Mar revolto em que pescava tubarões. Nos seus gestos de afirmação de uma masculinidade ameaçada nunca esquecia de beber, seja em safáris ou na Guerra Civil Espanhola. Mas fazia questão de escrever sóbrio. Seu conselho era: "Faça o que prometeu quando bêbado. Assim você aprende a não falar demais".
Um brinde silencioso, pois, a Hemingway. O drinque que faz alusão à morte é uma forma de viver o presente. E terminar o dia, até que o sol também se levante.
Death in the afternoon
- 30 ml de absinto
- 120 ml de champanhe
Passo a passo
Despeje o absinto em uma taça flute e complete com champanhe até atingir o efeito de uma opalescência leitosa, como descrito por Hemingway.
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