O diretor grita como um lutador de kung-fu para a equipe. Mais persuasivo, pede ao famoso ator que olhe lentamente para a câmera e diga, como se fosse o Humphrey Bogart em "Casablanca": "Saúde, amigos! É hora de Suntory!"
A tradutora resume, simplesmente: é para você se virar para a câmera. Já com o ânimo derretido como o gelo do copo, o ator pergunta: "Mas ele não disse mais coisas?"
A cena é a síntese de "Lost in Translation", filme de Sofia Coppola que no Brasil também se perdeu na tradução: "Encontros e Desencontros." O protagonista, com aquele tédio resignado, só podia ser Bill Murray ("Bob-san"), cool e engraçado na medida.
Uísque é uma bebida bastante consumida no Japão. A ponto de o país das nascentes do sakê produzir algumas das melhores marcas do mundo. Daí não ser nenhuma surpresa um cartaz com o Leonardo DiCaprio reproduzindo a pose de Murray numa propaganda de bourbon, com caracteres nipônicos ao lado. Sem tradução, só para o público local.
Celebridades anunciando rótulos de uísque pipocaram desde os anos 1950. Peggy Lee, considerada uma "cantora de cantores", ou seja, admirada por seus pares, posava ao lado de um scotch "para os entendedores de scotch". Bette Davis chancelava um bourbon, com os dizeres "dois dos únicos" -ela e a garrafa.
No campo do patriotismo, refúgio óbvio de publicitários, o canadense Oscar Peterson, grande pianista de jazz, exaltava as qualidades de um uísque conterrâneo. Sacrilégio mesmo, questão de segurança nacional, o escocês Sean Connery anunciava uma marca de americaníssimo bourbon, emprestando seu charme das Terras Altas aos rivais no mundo dos barris de carvalho.
O britânico David Niven, por sua vez, símbolo de humor elegante, se colocava ao pé de uma lareira, olhava para o espectador e dizia: "Olá, amigos do Brasil! Vocês me conhecem? Bom, não importa." O importante era aquele uísque. "Aqui na Inglaterra tomamos puro. Mas também fica ótimo do jeito brasileiro, on the rocks". E arrematava com um "Saúde!" mais ou menos ajambrado.
Ney Latorraca gravou uma propaganda do mesmo blend no Waldorf Astoria de Nova York. Estamos nos já longínquos anos 1980. À vontade, esbanjando simpatia, recitava: "Muda o país, muda a garrafa, mas o (...) não muda."
O passaporte para a bebida feita com cevada data de 1400, nas regiões entre Escócia e Irlanda, que brigam pelo legado. Bardo nacional da pátria renegada pelo 007, o poeta pré-romântico Robert Burns, grande influência sobre Coleridge e Shelley, cometeu alguns versos ébrios: "Cerveja barata ou uísque/é escolha certa/um bom gole/ e a cabeça desperta."
Possível razão para o batismo do nosso coquetel da semana -a outra hipótese é uma marca de charutos de mesmo nome- Bobby Burns também inspirou o mestre do terror H.P.Lovecraft, que faria aniversário nesta sexta, 20. No poema "Red, red rose", um apaixonado se declara: "Vou te amar até que sequem todos os mares".
As linhas de Burns incendiaram a imaginação do autor americano, que escreveu o conto apocalíptico "Till A' the Seas". Nele, descreve justamente uma Terra em chamas, em que os oceanos viraram desertos, e a humanidade migra para os pólos em desespero. Foi publicado em 1935.
Melhor seguir os conselhos festivos do poeta escocês e molhar a garganta enquanto é tempo.
Bobby Burns
- 60 ml de uísque
- 20 ml de vermute doce
- 10 ml de licor Bénédictine
Passo a passo
Mexa os ingredientes com gelo e coe para uma taça coupe gelada. Decore com uma casca de limão.
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