Gelo e gim

Coluna é assinada pelo jornalista e tradutor Daniel de Mesquita Benevides.

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Gelo e gim

Da cozinha com Brizola, meu pai e um padre sai uma deliciosa caipirinha

Aguardente de cana une as histórias do político, de escritores e de um religioso bon-vivant

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Era 1980, eu tinha 15 anos. Cheguei da escola e vi meu pai bebendo alegremente com Padre Palácios, nosso vizinho, e um sujeito de sotaque gaúcho, a quem fui apresentado. Entre um gole e outro de cachaça envelhecida, riam e trocavam causos.

Padre Palácios era basco, fugido da Espanha por seu envolvimento com o movimento separatista. Era também socialista. Foi assim que conheceu aquele sujeito cativante, que acabara de chegar de um exílio de 15 anos.

Minha mãe apareceu com compras da feira e ele, saudoso das coisas da terra, foi reconhecendo as frutas e legumes, até parar nas reluzentes jabuticabas. Aí a festa foi maior. Contando animado sobre seus projetos de voltar à política foi comendo uma a uma, sem cerimônia. Dois anos depois ele seria eleito governador do Rio. Era Leonel Brizola, um dos irredutíveis que fizeram frente ao avanço militar em 1964.

A caipirinha de jabuticaba do Restaurante Espaço Pau Brasil, no Jardim São Paulo
A caipirinha de jabuticaba do Restaurante Espaço Pau Brasil, no Jardim São Paulo - Otavio Valle

A poção do grande político nem precisava ser literal. No poema "Explicação", Drummond já explicava: "Meu verso é minha cachaça". E especificava: "Copo de cristal, canequinha de folha-de-flandres/folha de taioba, pouco importa: tudo serve."

Marçal Aquino, escritor elegante de histórias espinhosas, foi na mesma vibe ao metamorfosear a literatura em cachaça. É como se dissessem: é meu fraco, é do que gosto, é o que me anima. É meu forte.

Como se vê, ela, que já teve má fama (por puro elitismo), está sempre nas melhores bocas. Chico Buarque, por exemplo, cantou-a para o "caro amigo", um exilado em tempos de chumbo: "A gente vai tomando". Sem ela, continuava o compositor, "ninguém segura esse rojão". Naquela época, a inflação era alta. Então, a rima se completava: "é pirueta pra cavar o ganha-pão."

Já o ganha-pinga está em "O Malandro". Na dureza, ele "Senta à mesa/do café/Bebe um gole/de cachaça/acha graça/e dá no pé."

João Cabral de Melo Neto tinha dores de cabeça terríveis, mas não negava uma caninha. Principalmente se fosse produzida pelo amigo Vicente do Rego Monteiro, o pintor: "Bebi da aguardente/ que fabricaste,/servida às vezes/ numa leiteira./Mas sobretudo/ senti o susto/ de tuas surpresas."

Graciliano Ramos, outro apreciador do supra-suco dos alambiques, buscava no cárcere uns golinhos de contrabando para segurar aquele rojão. Preso em 1936, acusado de ser comunista, publicou as memórias desse período, que durou onze meses. Nelas conta como sua esposa trouxe escondida uma garrafa no dia de seu aniversário: "Arranjei meio de espatifar a rolha, enchi o caneco, fui pródigo."

Maurício Ayer, professor, pesquisador e um dos responsáveis pelo ótimo site Mapa da Cachaça, lembra em ensaio que a relação de Graciliano com a aguardente era de gosto, sim, mas também de janela para a liberdade e avivamento das lembranças, tal como a madeleine de Proust.

No diário do mestre alagoano, a voz do companheiro de prisão e pileque "desmaiava no som das ondas". Eram ruídos longínquos, que embalavam o "trabalho na minha sala de jantar", numa turva mistura daquele presente com o passado.

Trabalho que lhe era negado e hoje falta. O tempo se perde no decorrer da história, dizia Gil. Algumas partes, é melhor não repetir. As jabuticabas seguem vivas. Assim como a receita de caipirinha do padre bon-vivant que um dia foi meu vizinho.

Caipirinha de jabuticaba

  • Um punhado de jabuticabas (cinco ou seis)
  • 60 ml de cachaça
  • Duas colheres de açúcar

Passo a passo

Macere as frutas e o açúcar num copo americano. Acrescente gelo e em seguida a pinga. Mexa devagar até misturar bem os ingredientes.

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