O momento é de voltar à vida, ainda que os europeus nos lembrem que a pandemia continua à espreita. Na mixologia houve alguns renascimentos. O mais significativo talvez tenha acontecido logo depois do fim da Lei Seca nos Estados Unidos, que durou de 1920 a 1933.
Um preâmbulo é necessário. A Era de Ouro da coquetelaria se deu entre o final do século 19 e o começo do 20. Foi quando os bares se estabeleceram e quando foram criados muitos dos coquetéis clássicos, como o manhattan e o old fashioned.
Com o vírus do conservadorismo abstêmio, bartenders e seus clientes foram se abrigar nos subterrâneos. A criatividade rolou solta. Mais de 500 drinques surgiram nesse período, ao som do tilintar das taças, que tocava alegremente na surdina. Começava a Era do Jazz.
"A decisão geral de se divertir", como chamou Fitzgerald, pautava o clima. A primeira fala de Greta Garbo no cinema foi em "Anna Christie", de 1930: "Quero um visque (sic) com ginger ale. E não economize na dose, baby." Quem recusaria?
Mas era preciso ficar na moita. Havia senhas secretas e botões de emergência para afastar policiais. Os speakeasies tinham passagens dignas do Agente 86: podia ser uma cabine telefônica, uma floricultura ou uma funerária. Era entrar num caixão e encontrar a vida fervilhante do outro lado, mantida em mais de 40% de álcool suspeito.
A epidemia moralista finalmente cedeu à lógica econômica: nos quase 14 anos clandestinos os americanos gastaram 36 bilhões de dólares em bebidas de contrabando. E o governo não recebeu um centavo sequer em impostos. Era melhor pecar.
Com a volta ao novo normal da época, "a vida ficou mais simples, e os coquetéis também", avalia o crítico William Grimes em "Straight Up or On the Rocks." Uma imagem do livro resume tudo: "o frenético bater da coqueteleira cedeu lugar para o suave ruído do gelo num copo alto, e a paz voltou a reinar."
A ironia remonta à dualidade exuberante/elegante, barroco/clássico que sempre dividiu as artes. À frasqueira arisca no bolso do paletó, espécie de salvo-conduto para a rebeldia, correspondia agora o drinque caseiro pós-serviço, recompensa ao bom burguês.
Drinques de cores e sabores coloridos tornaram-se peças de mau gosto e as cartas dos melhores bares ficaram mais enxutas, mirradas. Aos poucos, os anos 30 suburbonizaram a mixologia.
Houve uma exceção: o zombie. Com a devastação na diversidade etílica, era esse levantador de defuntos que carregava a bandeira do novo. Criado por Donn Beach em 1934, fazia parte da nascente estética tiki, mistura de mitos das ilhas do sul do Pacífico com o marketing matreiro americano.
O zombie foi o pai dos coquetéis extravagantes. Com seus quatro tipos de rum, sucos e licores, desafiava os cartesianos de balcão. E desafiava qualquer um a tomar uma segunda dose. O nome nada tem a ver com os ícones da cultura polinésia que decoravam os bares tiki, mas com o vodu do Haiti, no Caribe.
Mais uma gafe da empáfia americana, que olha os países menos ricos sem distinção. O exemplo mais recente veio de "Alerta Vermelho", sucesso da Netflix, em que os personagens se perdem numa selva amazônica...na Argentina.
Haja zombies.
ZOMBIE (receita simplificada)
Ingredientes
- 60 ml de rum dourado (ou branco)
- 40 ml de rum escuro
- 30 ml de suco de abacaxi
- 20 ml de suco de limão
- 10 ml de grenadine
- 10 ml de licor Falernum Taylor's Velvet
- 5 ml de absinto
Passo a passo
Bata todos os ingredientes com gelo e coe para um copo alto. Acrescente gelo até o topo e decore com uma folha de hortelã.
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