Gelo e gim

Coluna é assinada pelo jornalista e tradutor Daniel de Mesquita Benevides.

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Gelo e gim
Descrição de chapéu Globo de Ouro

Coquetel pontua cena em 'Ataque dos Cães', filme favorito ao Globo de Ouro

Drinque antigo como as carruagens ressurgiu recentemente nas telonas

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Em algumas culturas, a laranja é confundida com a maçã do Paraíso. Oriunda do leste asiático, foi parar na França, onde a nomearam "orange". "Or", em francês, é ouro.

Para Truman Capote a fruta é a metáfora de uma narrativa perfeita. Conhecido por livros como "A Sangue Frio "e "Bonequinha de Luxo", ele explicou numa entrevista à Paris Review como saber se um escritor atingiu o ponto exato num texto. "Basta ver se você consegue imaginá-lo diferente, ou se o conto silenciou sua imaginação e parece absoluto como uma laranja."

Muitas das histórias de Capote têm essa qualidade cítrica, a combinação precisa de doçura e acidez. Como as metáforas também assumem formas literais, ele gostava de colocar a laranja em seus coquetéis, para apaziguar espíritos alcoólicos mais fortes ou adulterados.

Mesmo quando necessária, a prática deixava puristas de nariz torcido. Laranja no meu gim? Jamais! Para Bernard DeVoto, autor de "The Hour", uma ode rabugenta e engraçada ao dry martini, a ideia, "abominável", faz "o estômago paralisar".

Por outro lado, a laranja ajudou alguns devotos da abstinência a serem convertidos. Caso do humorista Robert Benchley, cavaleiro da távola redonda do Algonquin, que reunia a nata dos humoristas, mulheres e homens das letras dos anos 1920 no famoso hotel de Nova York.

Dorothy Parker, melhor amiga, insistiu para que ele provasse um orange blossom, coquetel com gim, suco de laranja e vermute. Sua reação ao primeiro gole foi: "Essa bebida é criminosa! Chamem já a polícia!" No décimo gole ele já queria um título no clube das libações de Zelda e Scott Fitzgerald, que o olhavam incrédulos.

O drinque, antigo como as carruagens, ressurgiu recentemente em "Ataque dos Cães". No filme indicado a sete Globos de Ouro, dois irmãos de personalidades intercambiáveis tocam um rancho deixado pelos pais. Quando um deles se casa com uma viúva, mãe de um rapaz de modos delicados, estranho à cultura western, a tensão ganha corpo.

O ano é 1925. A homofobia não tinha nome, mas era lei. Desde "O Piano", a diretora Jane Campion maneja com sensibilidade os símbolos da sexualidade reprimida. Aqui, as curvas de uma sela, de um laço ou das montanhas falam de um mundo silencioso, proibido.

Como flores de papel embebidas num copo, o orange blossom faz parte desse mundo. De acordo com o "The Old Waldorf-Astoria Bar Book", publicado em 1935, o coquetel pode ter sido criado por "algum noivo em busca de uma novidade para sua despedida de solteiro."

Kirsten Dunst em 'O Ataque dos Cães'
Kirsten Dunst em 'O Ataque dos Cães' - Kirsty Griffin/Netflix

A descrição é no mínimo curiosa e talvez sugira que o drinque surgiu da esbórnia. No filme é o contrário. Ele é servido numa recepção pós-casamento, pudicamente, para uns poucos da elite da cidade. O irmão marlboro, caubói ambíguo, que esconde o refinamento sob sarcasmo narcísico e pouco banho, aparece para azedar os brindes.

Perfeita em sua forma e conteúdo, a laranja alvissareira se desfaz diante do nó dramático em corda de couro. O bruto que também amou um dia, interpretado por Benedict Cumberbatch, o Doutor Estranho, exibe seu desprezo pelas mulheres, pela frivolidade e pelo amor convencional. E também pelos homens que tentam imitá-lo cegamente. Tomaria, sim, um orange blossom. Mas com a metade da laranja que se projeta numa floresta de espelhos.

ORANGE BLOSSOM

Ingredientes

  • 30 ml de gim
  • 30 ml de suco fresco de laranja
  • 15 ml de vermute doce

Passo a passo
Bata os ingredientes com gelo e coe para uma taça coupe gelada.

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