Gelo e gim

Coluna é assinada pelo jornalista e tradutor Daniel de Mesquita Benevides.

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Gelo e gim

Em seu primeiro filme, Eddie Murphy protagoniza cena com o black russian

Coquetel foi hit oitentista nos balcões norte-americanos, quando o medo da bomba nuclear não cancelava cardápios

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Vestido num impecável terno Armani, Eddie Murphy, um detento fingindo ser detetive, entra num bar coalhado de rednecks, com a bandeira confederada ao fundo. A música do sul escravocrata ocupa o espaço com eletricidade ariana. Caubóis e cowgirls batem botas levantando poeira do chão, num frenesi de chapéus e franjas.

Murphy abre espaço entre olhares de desaprovação e encosta no balcão. É seu primeiro filme, depois de dois anos fazendo rir no Saturday Night Live. A gana é grande. E ele não perde o momento. Pede uma dose de vodca ao barman carrancudo. Escorrendo racismo pela boca, este sugere que o melhor seria um black russian, coquetel com vodca e licor de café.

Murphy bate a mão aberta no balcão várias vezes e exagera a risada com ironia. "Boa piada, hahahaha. Black russian! Entendi! Porque sou black!" O barman, fumegando, serve a vodca. O ator entorna o copo. E então o atira no grande espelho do bar, estilhaçando a balbúrdia suprematista, refletida em mil pedaços. A banda para de tocar, todo mundo para de dançar. ​

Black russian, drinque feito com vodca, licor de café e gelo
Black russian, coquetel feito com vodca, licor de café e gelo - AdobeStock

O que se segue é uma verdadeira catarse. Murphy humilha os órfãos ressentidos da Guerra Civil e da KKK e se impõe com moral, sem amassar o disfarce.

O filme, já adivinharam os que viam Sessão da Tarde, é "48 horas" (1982), de Walter Hill. Não é grande coisa, ainda que tenha ganhado certo status cult. O humor é ingênuo e datado. As partes mais engraçadas são involuntárias, protagonizadas pela franja fru-fru de Nick Nolte, que faz contraste com sua espremida cara de machão. Mas tem essa cena, que vale todo o resto.

Quarenta anos atrás, Murphy/Nolte atualizavam a fórmula da dupla que se odeia a princípio para depois se entregar ao bromance. Traziam o elemento do mix racial, tentativa desajeitada de disfarçar a ausência de negros protagonistas nos filmes de Hollywood. Com um detalhe significativo: como acontecia com Oscarito e Grande Otelo, o nome do ator branco sempre vinha primeiro nos cartazes e letreiros, quando não maior.

Eddie Murphy em cena do filme '48 Horas', dirigido por Walter Hill
Eddie Murphy em cena do filme '48 Horas', dirigido por Walter Hill - Divulgação

Talvez a mais famosa dessas duplas tenha sido a de Danny Glover e Mel Gibson, em "Máquina Mortífera" (1987). Curiosamente, um militante de esquerda e um direitoso homofóbico. Mais adiante haveria Will Smith e Tommy Lee Jones na franquia "Homens de Preto" (1997). O rosto de Smith, aliás, não aparece entre o elenco quando pesquisamos o filme no Google. Guardadas as proporções, lembra os métodos da KGB de apagar a imagem dos desafetos.

O que torna Murphy especial é algo que Chris Rock tenta imitar, nem sempre com o mesmo efeito: o sorriso largo, tão malicioso quanto boa praça, com aquele diastema que lhe confere um ar juvenil. Aliado à velocidade verbal e uma esperteza cativante, dá um nó na cabeça dos coadjuvantes, pobres vítimas. Ele está falando sério ou está tirando sarro? O espectador sabe. Ou acha que sabe.

O estimulante ainda apareceria no blockbuster "Um tira da pesada" (1984), em que Murphy desbarata uma quadrilha de traficantes de cocaína depois que vê o pó da rubiácea num armazém usado pelos bandidos. É que o café mascara o cheiro da droga, enganando os cães farejadores da polícia.

Pois não se engane, o black russian, apesar da tentativa de insulto em "48 horas", está longe de ser ruim. É uma das dezenas de boas maneiras de servir vodca, um hit oitentista nos balcões norte-americanos, quando o medo da bomba nuclear não cancelava cardápios.

BLACK RUSSIAN

Ingredientes

  • 60 ml de vodca
  • 30 ml de licor de café

Passo a passo

Combine os ingredientes num copo old-fashioned com gelo.

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