Está lá o corpo estendido no chão. Ou no caixão. Peste Negra, espada, queda, tuberculose. Uma mulher se aproxima e despeja um líquido na boca do morto. De repente, ele se ergue, tossindo, como se tivesse sido salvo de um afogamento. Milagre!
Estamos no final da Idade Média, em algum vilarejo da Noruega. O líquido é o aquavit, pouco depois famoso por "curar qualquer doença conhecida pelo homem", de acordo com uma carta de 1531. Isso incluía a terrível doença de não respirar mais. Um levanta defunto, de fato.
A origem do nome não podia ser mais adequada. Vem do latim aqua vitae, ou água da vida. Como o francês "eau de vie", para conhaque. "Uisge beatha" (uísque) é o equivalente em escocês gaélico.
Em 1805, um navio partiu de Oslo em direção às índias orientais. Levava cinco barris de aquavit no porão. Ao chegarem, no entanto, não encontraram o prometido comprador. Também pudera, ele havia morrido. Não conseguiu esperar.
A passagem do tempo, então, era marcada pelo vento nas velas. Voltaram.
Nem tudo estava perdido: no caminho, a lei de Lavoisier se fez valer. Ao chegarem no porto, experimentaram o líquido da venda frustrada. Perceberam que estava mais dourado e bem mais saboroso. Atribuíram o fato ao balanço das naus no mar revolto e às variações de umidade e temperatura entre as latitudes.
A madeira de cerejeira dos barris ganhou mais vida no rebolado do grande casco e transmitiu sua personalidade ao grogue escandinavo. Desde então, essa prática é adotada pelos produtores da Linie, marca mais conhecida de aquavit na Noruega. Até porque nunca foram capazes de reproduzir o efeito de outra forma.
Após a destilação sustentável com cascas de batata e a infusão com alcaravia e outras ervas, como anis e dill, a bebida é envelhecida ao longo da viagem de ida e volta ao hemisfério sul. A linha do equador, cruzada duas vezes, dá nome à garrafa. É o sol a pino, no fim das contas, que batiza a aguardente da neve.
O procedimento não tem base científica. Mas dá um colorido de aventura à bebida. Mesmo assim, experiências semelhantes são feitas por destilarias diversas —não só de aquavit. Há aquelas, por exemplo, que colocam seus barris em plataformas sobre rios. Outras estocam suas bebidas num ambiente com poderosas caixas de som tocando graves no mais alto volume durante 24 horas por dia. A vibração sonora confere as notas ao destilado. Tem até quem envelheça suas poções no espaço.
É difícil encontrar aquavit no mercado brasileiro. Dá para tentar uma versão caseira. Basta colocar as ervas mencionadas (e mais funcho e cascas de limão, se quiser) numa garrafa de vodca e deixar por uns dias.
Como em tantos rituais de libação, o ritual para se beber aquavit baseou-se, originalmente, na desconfiança. Implica que os convivas se olhem, em silêncio. Virados os copos, devem voltar a se olhar. Prontos para outra rodada? É o que dizem sem dizer.
A partir daí, festa.
Em "Uma Temporada no Escuro", o norueguês de Oslo Karl Ove Knausgard escreve do ponto de vista de seu jovem narrador que beber "é como um vento soprando na consciência", faz com que "todos os preconceitos sejam deixados de lado". Que seja.
The Carvone (receita de Dave Arnold)
Ingredientes
- 6 gramas de folhas frescas de hortelã
- 60 ml de aquavit
- 10 ml de xarope de açúcar (1:1)
- Uma pitada de sal
Passo a passo
Macere as folhas de hortelã na coqueteleira, acrescente a aquavit e mexa. Ponha os demais ingredientes e bata com gelo. Coe para uma taça Nick & Nora e decore com um twist de limão.
Comentários
Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.