Daniel Furlan

Ator, comediante e roteirista, é um dos criadores da TV Quase, que exibe na internet o programa "Choque de Cultura".

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Daniel Furlan

Brainstorm

Tentei superar o trauma de DJ de formatura com um trabalho ainda mais traumático

Minha função era simplesmente apertar o botão play nos cidades negras e frejats escolhidos pelos formandos do curso de serviço social na hora em que fossem pegar o canudo no palco. No meu canto, com meu laptop obsoleto, eu não estava exatamente confiante, mas não tinha muito com o que errar. Sim, eu era o "DJ de colação de grau".

Só que eis que, num desses caprichos da tecnologia, a faixa de uma das formandas resolveu não tocar. E quando ela, já no palco, percebeu que diante de colegas, familiares e inimigos sua música especial jamais tocaria, não teve jeito. As lágrimas começaram a despencar do seu rosto. "Esse era o momento mais importante da minha vida!" —ela chorava.

Ilustração
Luciano Salles/Folhapress

O pró-ativo câmera veio correndo com a missão de ficar apertando desesperadamente o mesmo botão, como se o problema fosse meu dedo.

Talvez fosse. Talvez eu não tenha dedos de DJ. Naturalmente todos os olhares do salão voltaram-se para mim, que não tinha o que fazer a não ser esperar acordar do pesadelo que é, com apenas um dedo, destruir o dia mais importante da vida de alguém —pesadelo recorrente em minhas noites de sono desde então.

Me pareceu óbvio que para superar esse trauma eu tinha que arrumar um trabalho mais traumático ainda. Foi assim que começou minha curta experiência na publicitária.

Para aliviar a dor horrível, eu tinha o hábito de, durante os intermináveis brainstorms nos quais todas as ideias terminavam em propagandas com jovens tatuados dançando sem motivo, ir ao banheiro, onde dormia deitado no chão, tendo pesadelos com a tal música da colação de grau —e a formanda chorando, naturalmente.

Não me lembro o nome da música, até porque não consegui que ela tocasse, mas ela me persegue como um mantra com letra de redação escolar —procuro um amor que seja bom pra mim, vou procurar, eu vou até o fim, e eu vou tratá-la bem —ou algo nesses termos.

Nunca terminei de ler "A Interpretação dos Sonhos", mas até onde sei sonhos não seguem uma ordem lógica, de modo que o incidente da colação desembocava numa imagem da própria agência publicitária pegando fogo enquanto eu ficava esquecido dormindo no banheiro. Era nessa hora que eu sempre acordava de supetão. Mas a agência nunca tinha realmente pegado fogo.

E eu tinha que voltar para o brainstorm.

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.