Daniel Furlan

Ator, comediante e roteirista, é um dos criadores da TV Quase, que exibe na internet o programa "Choque de Cultura".

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Daniel Furlan

O brigadeiro

Fiquei sozinho na mesa ao lado de um doce mordido e largado

Ilustração
Luciano Salles/Folhapress

Hoje fui deixado sozinho na mesa.

Hoje fui deixado sozinho na mesa e, quando me deixaram sozinho na mesa, completamente sozinho, percebi que ao meu lado havia um brigadeiro largado. Mordido e ignorado. 

É óbvio que ninguém não ingeriria um alimento nessas condições, tão próximo de ser considerado lixo. É nojento. Ninguém faria uma coisa dessas, e essa nem é a questão.

Ainda que ninguém esteja olhando. Mas ninguém nunca está olhando, as pessoas estão preocupadas com os problemas delas, ninguém fica atento se tem alguém encarando um brigadeiro mordido de uma pessoa que foi embora na mesa ao lado. Timidez é autocentrismo. Ninguém se importa.

E, a bem da verdade, é como se a pessoa que estava ao meu lado tivesse dado uma mordida e me oferecido em seguida, com o detalhe de que ela não me ofereceu. E de que foi embora. Mas, ao mesmo tempo, seria como pegar um resto de comida no lixo, só que, em vez de estar no lixo, estava em cima da mesa.

O que faz toda a diferença. Eu jamais comeria restos de comida de uma mesa vazia qualquer, mas não era uma mesa vazia qualquer, era a minha mesa vazia. Minha. Ainda mais agora que fiquei sozinho. 

Uma pessoa simplesmente não quis terminar aquele brigadeiro e havia acabado de sair. Não é como se o brigadeiro estivesse ali a tarde toda. Muitas vezes compramos brigadeiros que são vendidos como novos, mas estavam prontos a tarde toda. Pouca gente se atenta a isso. 

Aquele brigadeiro ali, mordido ao meu lado, mesmo usado, é mais novo do que muito brigadeiro novo por aí. E, como eu disse, seria a mesma coisa que a pessoa tivesse dado uma mordida e me oferecido. E eu diria sim. Afinal, quem em pleno 2018 diz não quando lhe é oferecido um brigadeiro?

Por outro lado, eu não vi a pessoa mordendo o brigadeiro. Pode ser que ela tenha botado o brigadeiro inteiro na boca, onde ele foi movimentado como um joguete daquelas glândulas da língua que captam o sabor, parcialmente mastigado e depois devolvido ao prato, descrente de que alguém teria a coragem de comer. 

Eu sou corajoso. Mas não sei se coragem nesse caso é uma virtude. Um brigadeiro mastigado é pior do que lixo, é pior do que velho. Ele é semidigerido. Definitivamente uma péssima ideia. Estava ótimo. Meu Deus, estava bom demais.

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