Demétrio Magnoli

Sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.

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Demétrio Magnoli

Radicais do Brexit agem como se Império Britânico ainda existisse  

Churchill defenderia o Brexit? A pergunta, obviamente, não tem resposta 

Peter Ammon, um dos mais cultos diplomatas alemães, acaba de deixar o posto de embaixador em Londres, o último antes da aposentadoria. É dele a observação de que o revival em curso de Winston Churchill, nos filmes "Darkest Hour" ("O Destino de uma Nação") e "Dunkirk", guarda interessantes conexões com o Brexit. É verdade que a produção de ambos começou antes do plebiscito sobre a saída da União Europeia (UE), mas o renovado interesse pela imagem da resistência isolada britânica à Alemanha nazista reflete ---e, ao mesmo tempo, nutre--- as narrativas eurocéticas. Churchill como ícone do Brexit ---nada mal, hein? Contudo, faz sentido?

O Brexit, segundo seus arautos, é um estandarte de independência, identidade e singularidade. Numa cena do "Darkest Hour", centenas de barcos civis cruzam o canal da Mancha para a heroica evacuação de Dunquerque. Atrás deles, as falésias brancas de Dover, formações calcárias riscadas por quartzitos que se erguem mais de cem metros acima das águas do canal da Mancha, um símbolo clássico da fortaleza insular britânica. Desde a Magna Carta, a Inglaterra elaborou uma identidade política fundada na soberania do Parlamento de Westminster. O "excepcionalismo britânico" ---eis a legitimação buscada pelos promotores do Brexit.

Churchill defenderia o Brexit? A pergunta, obviamente, não tem resposta. O líder que "mobilizou a língua inglesa e a enviou ao campo de batalha", na frase atribuída a seu rival, visconde Halifax, cantou mil vezes o "excepcionalismo britânico"--- e, mais em nome dele que de alguma lógica econômica, reinstituiu desastrosamente o padrão ouro em 1924. Ele declarou, em 1929, que o Reino Unido estava "com a Europa, mas não dentro dela". Em 1944, face ao Dia D, explicou a De Gaulle que, "entre a Europa e o mar aberto", os britânicos sempre escolheriam o segundo. Se você quer contar a história abolindo a historicidade, tem o direito de desenhar uma caricatura de Churchill, com o charuto e tudo, sob a bandeira do Brexit.

As coisas se complicam quando os textos aparecem junto com seus contextos. Em setembro de 1946, na Suíça, Churchill falou num "tipo de Estados Unidos da Europa" baseado na cooperação franco-germânica e apoiado tanto pelo Império Britânico quanto pelos EUA. Seis meses antes, em Fulton, Missouri, ele pronunciara o discurso sobre a "cortina de ferro", clamando pelo engajamento dos EUA na proteção das "democracias ocidentais" da Europa contra o fantasma do expansionismo soviético. "Unidade da Europa" significava, para ele, naqueles anos, uma trincheira defensiva diante do poder militar da URSS.

No verão de 1950, Churchill qualificou como "atitude miserável" a recusa do governo trabalhista de Attlee em participar das negociações do Plano Schuman, embrião da Comunidade Europeia. Ele não cogitava a hipótese de entrar num acordo federal europeu, aferrando-se à ideia de que o futuro britânico estava soldado à Commonwealth e à aliança prioritária com os EUA. Contudo, na ocasião e por toda a década seguinte, enxergava o Reino Unido como parceiro especial do comboio europeu puxado pela locomotiva franco-germânica.

As circunstâncias importam. O trovador da "hora mais escura", falésias brancas no horizonte, preocupava-se com a influência internacional britânica. Hipnotizados pelos mitos nacionalistas, os radicais do Brexit agem como se o Império Britânico ainda existisse. Em Davos, Theresa May falou a um plenário esvaziado. O "Reino Unido global" evocado por figuras patéticas como Boris Johnson não passa de uma utopia regressiva de desregulamentação ultraliberal. Dentro da União Europeia, os britânicos modelaram o mercado comum e convenceram seus parceiros a incorporar as nações do antigo bloco soviético. Fora dela, o Reino Unido será pouco mais que um "Chipre com armas nucleares", na implacável definição de um cínico.

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