Demétrio Magnoli

Sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.

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Demétrio Magnoli
Descrição de chapéu Otavio Frias Filho

Otavio juntou a ordem ao caos

A Folha tal como existe hoje, com os seus defeitos, é uma combinação improvável

Conheci Otavio Frias Filho apenas superficialmente. Numa de nossas raras conversas, ele perguntou o que eu achava do projeto editorial da Folha. Respondi com outra pergunta: “Ainda não sei se vocês querem uma ordem caótica ou um caos ordenado”. “Talvez o segundo”, retrucou, com um sorriso quase imperceptível. 

O Projeto Folha, que se estende por quatro décadas, obra coletiva de gerações de jornalistas, desenrolou-se sobre dois trilhos assentados por Otavio. Ordem: o jornalismo profissional, baseado em métodos e regras, que busca a objetividade possível. Caos: o choque estridente de opiniões, “uma nação dialogando com ela mesma” (Arthur Miller), que busca refletir a pluralidade de ideias. A Folha tal como existe hoje, com todos os seus defeitos, é essa combinação improvável. Daí decorrem seu impacto e, também, o rancor que provoca entre as turbas da intolerância.


A ruptura deu-se no início dos anos 1980. Sob a inspiração de Otavio, o jornal incorporou uma geração de jovens oriundos de correntes do movimento estudantil e engajou-se na campanha das Diretas Já!. A nossa direita iletrada extraiu a conclusão de que a Folha é esquerdista, uma tolice em alta nesses tristes tempos bolsonáricos. Numa dessas reveladoras ironias, nossa esquerda concluiu algo similar —e, bem mais tarde, sentiu-se traída pelo jornal. 

Cinco dias antes da morte de Otavio, mais de 350 jornais americanos publicaram editoriais denunciando os ataques de Trump à liberdade de imprensa. Suspeito que Otavio reprovaria a iniciativa, não por seu conteúdo, mas pela forma de uma campanha política coordenada. Desde o fim do regime militar, a Folha nunca mais se engajou em campanhas. Sob uma ditadura, o partido do jornalismo é o da liberdade. Na democracia, o jornalismo profissional não toma partido —mas publica as mais diversas opiniões assinadas.   

Trump adquiriu o hábito de qualificar os jornalistas como “inimigos do povo”, uma expressão exterminista antiga celebrizada no regime stalinista. A nossa direita sempre enxergou o jornalismo da Folha sob essa lente. A esquerda, pelo contrário, gostava da Folha, enquanto o foco estava no governo rival. Depois, desde a ascensão de Lula ao Planalto, num crescendo, começou a tachar os jornais como “inimigos do povo” e a pregar o “controle social da mídia”. Em 2009, insuflados por intelectuais de esquerda, militantes petistas chegaram a promover uma manifestação de rua contra a Folha. A solidariedade perene do PT a Maduro e Ortega não é um detalhe, um evento menor, mas a explicitação de um programa.

As mensagens oriundas de vozes de esquerda sobre a morte de Otavio geralmente celebram a pluralidade da Folha, mas silenciam sobre seu jornalismo profissional. Há algo notável, aí: o que incomoda é a reportagem factual (a ordem), não tanto a publicação de opiniões “desviantes” (o caos). Prova de que vivemos na era do fenômeno batizado, acertadamente, como “epistemologia tribal”. Sob o influxo da colonização político-partidária das redes sociais, a disputa afasta-se do campo das interpretações para concentrar-se na própria esfera dos fatos. Na prática, cada tribo erige sua própria “realidade factual”, negando-se a reconhecer eventos estranhos a ela.

Nos EUA, os arautos do porte irrestrito de armas negam, rotineiramente, a ocorrência documentada de tiroteios em escolas, atribuindo as notícias a diabólicas conspirações da imprensa. No Brasil, o PT nega que um dia pediu o impeachment de FHC ou que a depressão econômica tenha se originado no primeiro mandato de Dilma. Os fatos, sem aspas, não passam de invenções dos “inimigos do povo”.

Otavio registrou a emergência da “epistemologia tribal”. Disso, concluiu que o jornalismo profissional é, hoje, um bem público mais vital do que nunca. Ele nos deixa cedo demais —e numa encruzilhada decisiva.

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