Demétrio Magnoli

Sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Demétrio Magnoli

Do castrismo ao criacionismo

Escola sem Partido persistirá na sua cruzada enquanto existir uma chama de inteligência nas salas de aula

Qual é o comprimento do segmento de reta que liga o ponto CAS, de castrismo, ao CRI, de criacionismo? A escola descobrirá a resposta nos próximos anos, cortesia do Escola sem Partido.

A teoria da geração espontânea asseverava que a vida nasce da matéria não viva, como os sedimentos dos rios ou o lixo. O Escola sem Partido nasceu do lixo —no caso, a sujeira ideológica acumulada ao longo de duas décadas. Terceira lei de Newton: a escola que conviveu com a cartilha da esquerda de botequim encontra-se, agora, sitiada por uma horda de bárbaros da direita de shopping center.

A Guerra do Paraguai foi arquitetada pela Inglaterra para evitar o surgimento de uma potência sul-americana. Cuba simboliza a esperança de redenção da América Latina. A democracia não passa de um manto protetor da exploração capitalista. Os EUA planejam roubar o pré-sal, as águas superficiais da Amazônia e os recursos subterrâneos do aquífero Guarani.

Israel é um Estado racista que precisa ser abolido. O terror jihadista é uma contraofensiva de povos humilhados pelas potências ocidentais. Os direitos humanos são uma proclamação do Ocidente destinada a destruir as identidades culturais de asiáticos, muçulmanos, africanos e afrodescendentes. O caldo borbulhante de sandices fez seu caminho até os manuais escolares, os vestibulares, o Enem. No fim, originou uma reação destrutiva que pretende converter a escola em anexo do templo.

O Escola sem Partido não identifica o problema real para solucioná-lo, o que exigiria uma reflexão de fundo, especialmente nas universidades e no magistério. O movimento acende uma fogueira, seleciona as bruxas e emite veredictos implacáveis.

Sua verdadeira finalidade é aproveitar as vulnerabilidades para subordinar a escola a uma polícia ideológica e de costumes recrutada entre autoridades locais, políticos, promotores e pastores. Sob o álibi das “convicções da família”, trata-se de submeter o ensino ao dogma, substituindo um discurso ideológico por outro.

Há boas chances de que produza estragos, pois opera como militância profissional organizada e conta com o respaldo do novo governo. Nesse sentido específico, assemelha-se ao movimento racialista, que conseguiu impor sua agenda minoritária de cotas raciais.

A escola ficará à mercê dos Novos Inquisidores se não fizer a lição de casa, traçando uma linha nítida entre o discurso pedagógico e o discurso doutrinário. Num tópico, o Escola sem Partido tem razão: professor e aluno mantêm relação desigual, pois o primeiro concentra tanto o poder intelectual quanto uma série de prerrogativas funcionais. Da desigualdade, resulta uma obrigação de contenção.

A missão dos mestres é ensinar os alunos a pensar, não explicar-lhes o que devem pensar. Na sala de aula não cabem o comício, a persuasão política, a narrativa partidária, que são expressões de autoritarismo disfarçadas sob o rótulo enganoso do “pensamento crítico”.

A lição de casa precisa ser feita não para evitar o espantalho da “doutrinação dos jovens”, algo totalmente ineficaz, nem para apaziguar o Escola sem Partido, que persistirá na sua cruzada enquanto existir uma chama de inteligência nas salas de aula. A escola deve fazê-la porque é a coisa certa a fazer –ou seja, por respeito a si mesma. Daí, ganhará autoridade moral para fechar as portas aos Novos Inquisidores.

Tempos estranhos –e um tanto ridículos. Enquanto nomeia um ministro de Relações Exteriores que anuncia a “confluência da história com o mito” propiciada pelo “Deus de Trump”, o governo promete limpar a sala da aula do veneno da ideologia.

Na escola sob assédio, tudo está em jogo, desde a ciência da evolução biológica até a história do advento dos direitos humanos, passando pelo ensino de saúde e sexualidade. Hoje, para escapar ao ponto CRI, a escola deve apagar o ponto CAS.

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.