Demétrio Magnoli

Sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Demétrio Magnoli

Guerra entre os 'homens de bem'

Só há lugar para um único Putin; eis a causa da guerra em curso

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Quem vai ser Putin?

Os “homens de bem”, implacáveis moralistas, heroicos cavaleiros andantes da luta contra a corrupção, salvadores de uma pátria afundada na lama, estão em guerra civil. O choque fratricida envolve duas facções principais, além de milícias periféricas, que se digladiam pelo controle dos órgãos de Estado capazes de incriminar inimigos, marcando em suas testas a palavra “corrupto”. Eles guerreiam pela conquista de quatro bastiões: Ministério Público, Polícia Federal, Receita e Coaf.

O presidente Jair Bolsonaro e o ministro Sergio Moro - Adriano Machado-17.jun.19/Reuters

Há pouco, formavam um exército unificado. O cisma abriu-se com a eclosão do caso Queiroz/Flávio Bolsonaro, um divisor de águas. Jair Bolsonaro quer ser Putin: “Se é para ser um banana, tô fora! Fui eleito para interferir mesmo.” A declaração de guerra tem duplo alvo. De um lado, ameaça destruir a autonomia legal dos quatro órgãos. De outro, rompe a aliança entre o presidente e a Lava Jato, selada pela entrega do Ministério da Justiça a Sergio Moro. Sangue virtual já escorre nas redes sociais, que operam como tropas de infantaria. Há um caminho, ainda não trilhado, até o derramamento de sangue de verdade.

Não é um raio no céu límpido. A politização dos órgão de investigação judicial e supervisão financeira acelerou-se pela ação dos jacobinos da Lava Jato. A Vaza Jato ilumina a inversão promovida pelo Partido dos Procuradores: no Estado de Direito, evidências de crimes conduzem a indivíduos suspeitos; no Estado policial, suspeitos previamente selecionados conduzem à produção das evidências. Moro e seu fiel escudeiro, Deltan Dallagnol, sonharam ser Putin bem antes do triunfo de Bolsonaro. Só há lugar para um único Putin —eis a causa da guerra em curso.

“Minha família acima de todos”. Sob seu novo estandarte, o presidente que não é “um banana” tenta romper as muralhas destinadas a separar o Estado do governo, nomeando fiéis serviçais para os postos-chave do Ministério Público, da PF e da Receita. Ouvem-se, ao fundo, clamores de indignação de procuradores, policiais e auditores. Neles, mistura-se a cínica revolta dos aliados traídos à resistência tardia dos justos. Os primeiros querem de volta uma “autonomia” que funcionou como sinônimo da perversão jacobina do combate à corrupção. Os segundos reaprendem as virtudes de uma autonomia que, entorpecidos pelo corporativismo, se recusaram a defender. 

Os justos de hoje, onde estavam ontem? Os sinais do desvio fatal da Lava Jato surgiram nos manifestos políticos de Rodrigo Janot contra a “elite política”, no pacto espúrio do Ministério Público com Joesley Batista, na estratégia de vazamentos seletivos conduzida pela força-tarefa, na campanha de intimidação deflagrada contra ministros do STF. A Vaza Jato expõe uma história submersa de abusos e ilegalidades, mas seus picos emersos elevavam-se acima das brumas. Bolsonaro avança sobre baluartes degradados e guarnecidos por tropas desmoralizadas.

A Justiça, reino da formalidade, é terra estrangeira para os santos guerreiros da Lava Jato. Nas teias da informalidade que teceram, não se distingue o juiz do promotor nem o procurador do auditor fiscal. “Pede pro Roberto Leonel dar uma olhada informal”: as revelações sobre o papel desempenhado pelo chefe de inteligência da Receita alargam uma paisagem de ruínas. O polvo estendeu seus tentáculos até o Leão e começava a colonizar o Coaf. Os justiceiros envenenaram a Justiça, convertendo a investigação em conspiração. Moro, Dallagnol, Leonel —as defesas dos corruptos têm, nesses nomes, os pretextos perfeitos para anular processos ilegais e condenações viciadas. Dez hurras para os garotos de ouro.

Quem vai ser Putin? Na Rússia, sob o “controle social da mídia”, todos são “corruptos” exceto os aliados do Kremlin. No Brasil, que não é a Rússia, a guerra para ser Putin terá desfecho diferente. Cuidado, “homens de bem”, vocês combatem à luz do dia!

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.