Demétrio Magnoli

Sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.

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Demétrio Magnoli

A alma inteira num tuíte

O problema de Weintraub não é Deodoro, mas a ruptura política que inaugurou a modernidade

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Abraham Weintraub, o moleque malcriado da sexta série que ocupa a pasta da Educação, chamou a mãe de uma internauta de “égua sarnenta e desdentada”. Aqui e ali, pedem sua demissão, como se fosse possível, por essa via, lavar com sabão a boca do governo Bolsonaro. Esquece-se, no processo, a fonte da controvérsia e do insulto. O tuíte inicial do ministro, uma faísca de nonsense antirrepublicano, ilumina a alma inteira do novo partido de Bolsonaro.

A peça acusa o “traidor” Deodoro da Fonseca de, pela Proclamação da República, entregar o Brasil “às famílias oligarcas que, além do poderio econômico, queriam a supremacia política”. Junto, a imagem de Deodoro ao lado da montagem fotográfica de um Lula na farda, na barba e no bigode do marechal.

Na superfície, é “guerra cultural” barata: uma operação de descontextualização histórica destinada a atacar a elite política (“famílias oligarcas”), associando-a ao lulismo, para promover a ideia de um poder superior capaz de personificar a unidade da nação (Bolsonaro).

No fundo, é a exposição mais completa que um seguidor inculto de Olavo de Carvalho conseguiu produzir do ralo mingau filosófico do mestre. Trata-se, portanto, de uma imagem radiográfica das ideias que circulam no núcleo do bolsonarismo.

O contexto evita enganos. Lula, um dia, elogiou o “planejamento de longo prazo” do governo Geisel; Bolsonaro, todo dia, elogia a tortura do regime militar. Nenhum deles faz da ditadura militar sua referência política. O primeiro identifica-se com o nacionalismo estatista; o segundo exalta a violência e a aversão à democracia. O tuíte de Weintraub diz tudo. O inimigo ideológico de Bolsonaro é a República —não, precisamente, a república brasileira de 1889, mas o próprio conceito de República.

As repúblicas podem ser democráticas, oligárquicas, caudilhescas, autoritárias ou totalitárias. Mas no cerne do conceito está a ideia de soberania popular. A semente remota, cravada na fronteira entre história e mito, encontra-se no estabelecimento da República Romana (510 a.C.). As repúblicas contemporâneas nasceram nos EUA (1776) e na França (1792). A lei geral, a igualdade perante a lei —eis o fundamento filosófico da República. É contra isso que se insurge a “filosofia” do Bruxo da Virgínia.

No rastro da Revolução Francesa, pensadores ultraconservadores deploraram o caráter “antinatural” da insurreição (Edmund Burke, 1791), a “abolição de todas as distinções e funções hereditárias” (Joseph De Maistre, 1796), a “degradação moral” derivada da “marcha combinada do ateísmo, do materialismo e do republicanismo” (Louis de Bonald, 1796).

A nostalgia das tradições antigas, das hierarquias petrificadas, da família patriarcal, de um mundo regido pela espada e pela cruz emergiu da turbulência revolucionária. O Bruxo da Virgínia goteja a água dessa poça nas línguas secas de seus alunos ignorantes. 

Um artigo de Roberto Romano ajuda a entender as origens medievais da extrema direita. Nos delírios do núcleo bolsonarista, trata-se de restaurar uma ordem perdida, assentada numa escala de privilégios “naturais”, protegida pela palavra dos sacerdotes (bispos) e pelos exércitos privados dos nobres (milícias).

O problema de Weintraub não é Deodoro, mas a ruptura política que inaugurou a modernidade. A República, cidade sem Deus, conduz a Lula —eis o que o ministro da falta de educação aprendeu com o mestre charlatão.

Lá atrás, o charlatão lançou um alerta sobre os generais de Bolsonaro, mirando a cartilha de Comte e Constant: “o problema é que o positivismo abre as portas para o comunismo”. Hoje, desse lado, ele não tem motivos para se preocupar. Nos 130 anos da República, os militares da Esplanada seguem fiéis a um presidente antirrepublicano pois esqueceram o que aprenderam e queimaram o que adoraram.

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