Demétrio Magnoli

Sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.

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Demétrio Magnoli

O Estado que nos educa

Brasil confunde dever estatal de financiar a educação com moldar discurso dos professores

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Quando o presidente decidiu pontificar sobre livros didáticos, formou-se um pequeno escândalo sobre o periférico. As opiniões de Bolsonaro, boçais como de costume (um “lixo”, “um montão de amontoado de muita coisa escrita”), não movem nenhum moinho. 

Já o principal —a promessa de que, a partir de 2021, os livros escolares “serão feitos por nós”— passou como pretensão legítima. Acostumamo-nos com a ideia de que o Estado tem o direito de educar o povo. 

Um quarto de século atrás, não era assim. Os livros didáticos postos no mercado pelas editoras eram submetidos à escolha dos professores. Tínhamos uma saudável diversidade de obras, de qualidade bastante desigual, que refletiam as diferentes abordagens teóricas e pedagógicas em voga nas universidades.

O sistema de mercado, porém, excluía a maioria das escolas públicas, cujos alunos não podiam pagar pelos livros. A solução encontrada —a compra pública federal e centralizada— abriu o caminho das salas de aula às ideologias estatais.

Nos EUA, os livros são patrimônio das escolas e passam de uma turma de alunos à seguinte, em longos ciclos. Por aqui, o Estado preferiu estabelecer ciclos curtos de renovação dos livros. De um lado, a cara opção gera óbvios dividendos eleitorais. De outro, prende a indústria editorial de didáticos à órbita do poder público.

O MEC converteu-se no comprador quase monopolista: o verdadeiro patrão das editoras. Nessa condição, adquiriu a prerrogativa de esculpir as narrativas pedagógicas. 

Os governos do PT utilizaram esse poder para conduzir uma revolução em marcha lenta, revestida por uma fina película de saber acadêmico. As comissões de “especialistas” formadas nas universidades federais para selecionar obras “de qualidade” foram, regra geral, colonizadas por professores-ativistas.

As análises “técnicas” contaminaram-se de (pre)conceitos políticos. Aos poucos, num processo que jamais se completou, eliminaram-se inúmeras obras “desviantes”.

A revolução escolar atingiu livros de exatas e biológicas —mas, claro, teve impacto maior nos de humanas. Na era pós-Muro de Berlim, um marxismo outonal, diluído em caldos de anti-imperialismo, terceiro-mundismo e multiculturalismo, passou a impregnar a maior parte dos livros de história e geografia.

Siga o dinheiro: as editoras jamais reclamaram —antes, pelo contrário, assumiram o papel de correias de pressão sobre autores recalcitrantes.

As obras “de qualidade” deviam trafegar pelos circuitos do antiamericanismo ritual, da denúncia da “história ocidental”, da idealização romântica da África pré-colonial. A política identitária desceu como uma sombra sobre os textos escolares.

A escravidão moderna passou a ser explicada pela chave do racismo, não pela lógica do sistema mercantil colonial. A campanha abolicionista foi expulsa do palco iluminado da história brasileira. Zumbi dos Palmares transformou-se no ícone absoluto da luta antiescravista.

Confundimos o dever estatal de financiar a educação pública com o poder abusivo reivindicado pelo governo de invadir as salas de aula e moldar o discurso dos professores.

O Estado-Educador é, sempre e inevitavelmente, o Partido-Educador. Na proclamação presidencial de que os livros didáticos “serão feitos por nós”, o “nós” indica o núcleo ideológico que rodeia Bolsonaro.

A obra “suavizada” dos sonhos dessa turma é um manual nacionalista, autoritário e ultraconservador, anticientífico, de fortes colorações religiosas. Nele, evaporariam tanto a ditadura militar quanto as mudanças climáticas e o lugar do evolucionismo seria ocupado pelo criacionismo.

O projeto provavelmente fracassará, pois Bolsonaro carece das redes de legitimação acadêmica conferidas por brigadas universitárias de professores-ativistas. Mas o risco existe, num país que não aprendeu a separar o Estado da sala de aula.

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