Demétrio Magnoli

Sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.

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Demétrio Magnoli

Na era do neonacionalismo, a idiotia não tem fim

Vacinas, como smartphones, nascem de cadeias produtivas globais

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Boris Johnson envolveu-se num escândalo menor ao explicar, a camaradas do Partido Conservador, que as vacinas surgiram “por causa do capitalismo, por causa da ganância”.

O primeiro-ministro britânico tem alguma razão: na origem das vacinas predominantes encontra-se a mistura capitalista da ganância (das empresas farmacêuticas) com subsídios estatais de risco (dos EUA e do Reino Unido). Mas ele esqueceu de dizer que o nacionalismo ameaça travar a imunização global, prolongando a pandemia.

Trump invocou a Lei de Produção de Defesa, promulgada na Guerra da Coreia (1950-53), para sujeitar exportações de vacinas, insumos e suprimentos para imunização a autorização federal. O Reino Unido copiou os EUA de modo menos deselegante, firmando contratos de prioridade de entrega com a AstraZeneca, cuja vacina nasceu de uma torrente de subsídios públicos.

Sob escassez de imunizantes, a União Europeia acaba de impor controles de exportação de vacinas e insumos. A Índia, pátria do Instituto Serum, maior fabricante mundial de imunizantes, também limita exportações, como sabe o Brasil por experiência própria.

Só os EUA, entre as nações populosas, nadam nas águas mornas do excesso de vacinas. A oferta interna da Pfizer, da Moderna e da Johnson & Johnson é tão grande que o país desistiu de usar o produto da AstraZeneca. Oficialmente, são 7 milhões de doses estocadas. De fato, como apurou o New York Times, existem várias dezenas de milhões de doses prontas em duas fábricas, em Ohio e Maryland.

Canadá, México, Brasil, União Europeia e a Covax, da OMS, disputam a chance de adquirir o tesouro desprezado. Joe Biden (“vacinas americanas são, primeiro, para braços americanos”) reflete sobre o tema.

EUA e Reino Unido subsidiaram a fundo perdido a pesquisa e desenvolvimento de imunizantes pois calcularam corretamente os custos mirabolantes dos lockdowns nacionais.

A União Europeia preferiu ir à feira, como quem compra maçãs. Firmou contratos com diversas farmacêuticas que cobrem várias vezes sua população. No papel, está segura; na prática, as vacinas chegam em ritmo quase brasileiro, enquanto sucessivos lockdowns aquecem um caldeirão de tensões sociais. Daí, a sedução do nacionalismo vacinal.

Agora, a Comissão Europeia descobriu 29 milhões de doses da AstraZeneca armazenadas nas instalações de uma subcontratada nas cercanias de Roma e parcialmente destinado a terceiros países. Capturado pelos carabinieri, o lote foi transformado em arma no cabo de guerra entre a União Europeia e a farmacêutica.

“A Europa não deve ser um idiota útil na batalha contra o vírus”, reagiu um alto assessor do francês Macron, clamando pelo salto rumo ao controle de exportações. Na era do neonacionalismo, a idiotia não tem fim.

Vacinas, como smartphones, nascem de cadeias produtivas globais. O processo produtivo depende da oferta de equipamentos (biorreatores, bombas, unidades de filtração), insumos bioquímicos (material celular, lipídios, substâncias farmacêuticas) e suprimentos de envase (máquinas, frascos, rolhas, congeladores).

Tudo isso, assim como seringas e agulhas para vacinação, é fabricado em plantas espalhadas por inúmeros países. As farmacêuticas não arriscarão multiplicar suas capacidades produtivas num cenário em que os intercâmbios internacionais tornaram-se reféns do nacionalismo vacinal.

Os EUA flutuam num lago de vacinas graças à Operação Warp Speed, o colossal programa de subsídios que, desde maio de 2020, articulou cadeias produtivas completas no território americano. Nenhuma outra nação, com a possível exceção da China, é capaz de replicar o esforço produtivo dos EUA. A escalada da oferta mundial de imunizantes exige coordenação multilateral, comércio livre e segurança contratual. O rótulo de idiotas –mas inúteis– aplica-se aos governos de todas as grandes potências.​

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