Demétrio Magnoli

Sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.

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Demétrio Magnoli

Três traduções do interesse coletivo

França e Austrália combatem coronavírus com leis; no Brasil, é puro arbítrio

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Na França, só se entra em cinemas e museus com prova de vacinação ou teste negativo —e logo a regra valerá para shoppings, cafés e restaurantes. Na Austrália, nova rodada de lockdowns atinge a maioria da população, enquanto a Europa volta à quase normalidade.

No Brasil, prefeitos cassam o direito à imunização dos chamados “sommeliers da vacina” —e recebem aplausos de ilustres comentaristas. Interesse coletivo versus direitos individuais, em três versões.

Vacinar é direito individual ou dever cívico? O governo francês decidiu-se pela segunda alternativa.

Manifestações populares conduzidas pela extrema direita ou pela extrema esquerda contestam o “arbítrio estatal”.

Há uma certa graça nas cenas de líderes extremistas, admiradores de Putin ou do castrismo, engajando-se na apologia dos direitos civis.

A diversão cessa quando eles cruzam o limite do discurso delinquente para equiparar o “passe sanitário” à marcação dos judeus com estrelas de Davi pelo regime nazista.

A resistência à vacinação estende-se por mais de um terço dos franceses e, até o advento do “passe sanitário”, a campanha de imunização seguia em ritmo inferior ao da maioria dos países europeus. O alegado direito de recusar a vacina seria pago por mais óbitos derivados da persistência da epidemia e empregos perdidos em renovadas restrições sanitárias.

Nos EUA, onde as hospitalizações concentram-se em estados com alta proporção de eleitores de Trump e baixas taxas de imunização, governadores republicanos ponderam a necessidade de imitar a lei francesa.

Ao contrário da França, na Austrália faltam vacinas. Desde o início, a ilha-continente adotou a estratégia de Covid-Zero pregada pelo fundamentalismo epidemiológico. O governo decidiu que o vírus seria eliminado por meio de lockdowns implacáveis —e, portanto, a imunização jamais figurou como prioridade.

A vida acima de tudo: sob a tradução australiana do interesse coletivo floresceram hotéis de quarentena vigiados por forças policiais e cassou-se o direito ao retorno de cidadãos residentes no exterior.

O fundamentalismo epidemiológico provou-se errado. O coronavírus resiste a qualquer lockdown e, tudo indica, mesmo à vacinação coletiva. A maioria das nações optou por conviver com o patógeno, reduzindo radicalmente os contágios e hospitalizações pela imunização em massa.

A Austrália, porém, tornou-se refém da doutrina de supressão absoluta do vírus, que vai se convertendo numa doutrina de supressão absoluta das liberdades públicas por tempo indefinido.

No Brasil, como na Austrália, ainda faltam vacinas — mas, ao contrário da França, e como atestado de mais um fracasso de Bolsonaro, a resistência à vacinação é insignificante. O interesse coletivo exige acelerar a campanha de imunização, o que se traduz no plano político pela denúncia da sabotagem governamental na aquisição de vacinas.

Mas, em busca de um lugar ao sol, diversos prefeitos trocaram de alvo, definindo cidadãos comuns que tentam selecionar vacinas como inimigos do interesse coletivo.

Os “sommeliers da vacina” não violam lei alguma quando circulam de posto em posto à procura de seu imunizante preferido —e, no fim, desistem ou tomam a vacina oferecida.

Já os prefeitos que registram seus nomes e os transferem para o “fim da fila” violam seu direito à vacinação, cujo exercício está regulado por regras impessoais de prioridade.

De fato, incorrem nos crimes de discriminação e negação de atendimento de saúde. O interesse coletivo funciona, no caso, apenas como álibi para a prática de um ato arbitrário capaz de render pontos no tribunal das redes sociais.

Na França e na Austrália, distintas traduções do interesse coletivo são amparadas por leis votadas nos parlamentos. No Brasil, a punição aplicada pelos prefeitos é puro arbítrio. Bolsonaro perdeu; o bolsonarismo vive.

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