Demétrio Magnoli

Sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.

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Demétrio Magnoli

Política identitária cria índio atemporal com direitos perenes a terras de supostos ancestrais

Pobres do campo seriam as vítimas de um 'resgate de dívidas históricas' patrocinado por juízes indiferentes à Constituição

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Numa nota do Painel da Folha, aparecem como sinônimos as expressões “terras indígenas” e “terras contestadas”. De fato, o STF julgará essa presumida equivalência ao apreciar o recurso que trata do marco temporal. De quebra, decidirá se o tribunal superior tem o direito de produzir emendas à Constituição, substituindo o Congresso.

O artigo 231 da Constituição de 1988 reconhece os direitos dos índios “sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las”. O mesmo artigo precisou: “São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente”.

O STF voltou ao tema em 2009, no julgamento da demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol. No voto do relator, Ayres Britto, ficou pacificada a interpretação óbvia de que a data de promulgação da Constituição esclarece o significado de “terras tradicionalmente ocupadas”. Os índios não têm direito a terras “ocupadas em outras épocas” (ou seja, virtualmente a todo o país) nem a terras “que venham a ocupar”, explicou Britto. O marco temporal não é uma invenção perversa de agricultores ou garimpeiros, mas uma determinação constitucional.

Na ação em curso, o advogado do grupo indígena defendeu a abolição da Constituição: “O marco temporal parte do negacionismo, da negação à ciência antropológica, que conta com método próprio e é a única a dizer os limites das terras indígenas”.

As palavras “negacionismo” e “ciência” estão na moda, por bons motivos, mas o que pretende o advogado é converter em indígenas qualquer terra “ocupada em outras épocas” ou “que venha a ser ocupada”, sob a única condição de legitimação por um laudo antropológico.

Uma densa corrente de antropólogos adotou a política identitária, segundo a qual os brasileiros dividem-se em “raças” definidas por ancestralidades reais ou alegadas.

A doutrina esculpe um “índio eterno”, atemporal, com direitos perenes a terras ocupadas por supostos ancestrais. Dela, emerge o projeto de restauração de povos indígenas, ao amparo de ONGs militantes e em nome da “reparação” de injustiças históricas. A consequência: todas as terras “que venham a ser ocupadas” tornam-se “terras contestadas” e, no passo seguinte, “terras indígenas”.

A demanda de derrubada do marco temporal choca-se com a Constituição e com a própria decisão do STF de 2009, mas não é causa perdida.

“Uma Constituição se faz Constituição no desenrolar de um processo constituinte material de índole permanente”, pelo recurso a “ações afirmativas” e pelo “resgate de dívidas históricas”, escreveu Edson Fachin em 2011, antes de chegar ao Supremo. Luís Roberto Barroso compartilha tal ponto de vista, que propicia um ativismo judicial incontido. A lei não seria o que escreveram os constituintes ou o que decidem os representantes eleitos, mas a expressão da vontade iluminada dos magistrados.

A polarização política extrema tende a gerar debates caricaturais. Os proponentes da supressão do marco temporal desenham um confronto bipolar entre o Índio (imagem da pureza imemorial) e o Agronegócio (representação da barbárie moderna), como se o “Brasil profundo” pudesse ser descrito nos termos de uma luta titânica entre entidades imaginárias.

Há, sem dúvida, incontáveis conflitos fundiários decorrentes de invasões de terras indígenas legítimas, especialmente nas áreas de garimpagem ilegal.

Mas, nesses casos, a resposta está na Constituição, que manda proteger as “terras tradicionalmente ocupadas”. Efetivamente, porém, a maior parte das “terras contestadas” envolve posses antigas de pequenos agricultores e caboclos amazônicos ameaçados pelo projeto de restauração de um mítico Brasil ancestral. Os pobres do campo seriam as vítimas de um “resgate de dívidas históricas” patrocinado por juízes indiferentes ao texto constitucional.

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