Demétrio Magnoli

Sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.

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Demétrio Magnoli

Uma ilusão de cor

Caracterizar a escravidão como sistema econômico é o contrário de legitimá-la

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Fazendeiro branco, escravo negro: a imagem icônica produz a ilusão de que a escravidão moderna foi um sistema de dominação racial. De fato, porém, foi um sistema econômico.

A escravidão acompanhou a humanidade durante milênios. Nas mais diferentes sociedades, inclusive na África, gente de todas as cores escravizou gente de todas as cores. O capitalismo mercantil acelerou a produção e o comércio de incontáveis mercadorias –e, também, de escravos. Na sua moldura, o tráfico atlântico forneceu africanos escravizados para as Américas.

Nas Américas, o largo predomínio de escravos africanos resultou da circunstância econômica de que o tráfico transatlântico garantia oferta regular e barata de cativos. Africanos não foram convertidos em escravos por serem negros, mas porque o comércio oceânico despontou como um dos maiores negócios da época.

Na África, reinos poderosos escravizavam seres humanos, conduzindo-os a entrepostos litorâneos para vendê-los aos agentes do tráfico atlântico. Os cativos eram transportados em navios europeus ou norte-americanos.

No Brasil do século 19, ricos traficantes circulavam na corte como respeitáveis homens de negócios. Alguns eram “negros”, segundo a atual linguagem binária do racialismo.

A escravidão era a norma. O escravo figurava como ativo patrimonial e, além disso, sinalizava a condição social do proprietário. Por isso, os raros ex-escravos que conseguiam ascender socialmente compravam escravos: o teu cativeiro simboliza a minha liberdade e a minha prosperidade.

Nada disso é novidade. Tudo o que vai acima emana da pesquisa histórica consagrada, escrita por autores de todas as cores. Os militantes da política identitária escolheram, porém, definir a historiografia da escravidão moderna como uma aberração moral.

Eles exigem que o sistema econômico escravista seja reinterpretado como um sistema de dominação racial. Trata-se de uma operação política, não de um esforço acadêmico de revisionismo. Afinal, se a escravidão foi um crime racial cometido por “brancos” contra “negros”, torna-se razoável requisitar de todos os “brancos” o pagamento de “reparações históricas”.

Escravidão e racismo são fenômenos distintos –e até certo ponto contraditórios. O racismo não era necessário para a existência de escravidão. Bastava a força, como atestam séculos de escravização de europeus por europeus, na Europa, e de africanos por africanos, na África.

O racismo floresceu no outono da escravidão, como ferramenta para circundar o princípio da igualdade natural entre os seres humanos e subjugar pessoas juridicamente livres. Otelo só é “negro” na linguagem atual, moldada pelas noções raciais; na época de Shakespeare, era um príncipe mouro e um general de Veneza.

Contudo, a distinção entre escravidão e racismo é qualificada como abominação pela militância racialista, pois assim pode-se acusar os “brancos” de persistir até hoje num crime deflagrado pelo primeiro navio negreiro que cruzou o Atlântico.

Caracterizar a escravidão como sistema econômico é o contrário de relativizá-la ou legitimá-la. No sistema escravista, ex-escravos (“negros”) tinham a possibilidade de comprar escravos (“negros”) –e o faziam, quando podiam.

A férrea lógica do escravismo tendia a provocar, portanto, a extinção de sentimentos básicos de solidariedade entre pessoas que haviam compartilhado a mais terrível experiência de desumanização. Não existe maior condenação moral da escravidão do que tal constatação.

A escravidão acabou; o racismo, não. O discurso identitário que divide a sociedade em raças e acusa o contingente “branco” da população de ser coletivamente responsável pelo crime da escravidão não erra apenas historicamente. No plano político, a acusação (i)moral semeia rancores sociais que fertilizam o solo no qual cresce a erva venenosa do racismo.

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