Demétrio Magnoli

Sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.

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Demétrio Magnoli

A expressão perdida

Insistir no impeachment de Bolsonaro seria o único caminho decente para a democracia

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Atônitos, os embaixadores assistiram a um espetáculo singular. Bolsonaro, chefe de Estado, comportou-se como líder de uma seita extremista (de direita ou esquerda) denunciando perseguições eleitorais conduzidas contra ele por um Estado maléfico.

Na sequência, o evento foi alvo de diversas notas críticas assinadas pelo presidente do Senado e pelos demais candidatos presidenciais. Nenhuma delas cravou a expressão precisa: crime de responsabilidade. Nossa democracia cambaleia.

Debati, em 2018, na Casa Folha da Flip, com o intelectual petista André Singer. O impeachment de Dilma ocorrera menos de dois anos antes e Lula encontrava-se preso. Singer sustentou a ideia de que o lulismo esgotava-se numa crise profunda. Discordei, argumentando que o lulismo seguia como alternativa viável de poder. Depois, concordei com a avaliação dele de que repetidos impeachments enfraquecem a democracia.

Acertei ao discordar; errei ao concordar. No fundo, o dilema abstrato não faz sentido. Impeachment é uma das últimas linhas de defesa da democracia: a faca grosseira que, cortando o abuso de poder presidencial, preserva o império da lei. O Congresso nunca avançou rumo ao necessário impeachment de Bolsonaro porque foi comprado pelo orçamento secreto.

O governo Bolsonaro obteve, por via legal, o que o governo Lula não conseguiu pelas vias ilegais do mensalão e do petrolão. Apavorado pelo espectro do impeachment, o atual presidente renunciou à sua prerrogativa de gerir o orçamento, entregando-o como butim aos parlamentares. É uma estratégia coerente, no caso de um presidente engajado exclusivamente no sonho insano de subverter o regime democrático.

Lula jamais faria algo semelhante, pois acalentava, além de um projeto de poder, um programa político e econômico. No caso dele, a aquisição de maioria parlamentar por vias corruptas destinava-se, precisamente, a eliminar os contrapesos parlamentares constitucionais à prerrogativa presidencial de gerir o orçamento público.

Quantos crimes de responsabilidade Bolsonaro já cometeu? O criminoso serial atingiu um ápice no seu comício para os embaixadores. Ali, em evento oficial, diante de representantes de dezenas de Estados, o presidente atacou a imagem de uma instituição basilar da democracia brasileira. O nome correto disso é traição à pátria. Mas tudo terminou na célebre pizza —e nem mesmo a oposição de esquerda ergueu a voz para clamar pelo impeachment.

A maioria parlamentar, que não é bolsonarista, comporta-se segundo as regras da transação consumada pelo orçamento secreto. Já a minoria lulista reprime o grito de crime de responsabilidade por cálculo eleitoral: a preferência de Lula pelo embate nas urnas com um presidente incapaz de se reeleger. Não por acaso, zombando do império da lei, maioria e minoria aprovaram juntas a PEC Kamikaze.

O Congresso dorme no recesso parlamentar? Não há votos suficientes para abrir o processo de impeachment? Arthur Lira, militante fiel de Bolsonaro, converteu a Câmara num corpo inerte? Mesmo sem chance de êxito, insistir no impeachment seria o único caminho decente —e, de quebra, imporia ao presidente subversivo a carga de fazer campanha à sombra da acusação de crime de responsabilidade.

No rastro do patético comício aos embaixadores, partidos de esquerda solicitaram ao STF abertura de inquérito sobre a ofensiva presidencial contra as instituições. Tenta-se solucionar um problema de natureza política pela ação dos tribunais. A democracia cambaleia porque o Congresso desistiu de cumprir seu papel, transferindo-o ao Judiciário. Não é verdade que as instituições funcionam plenamente.

Falta, ao bolsonarismo, a força para implantar um regime autoritário. Mas, que ninguém se engane: a extrema-direita já conseguiu, em apenas um mandato incompleto, devastar a paisagem de nossa democracia.

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