Demétrio Magnoli

Sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.

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Esqueçam o que falei

Lula não dirá a frase proibida, pois o papa jamais se equivoca

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"Esqueçam o que escrevi". A suposta frase de FHC, parte do folclore político nacional, ganha agora uma versão lulista implícita. "Esqueçam o que falei" —eis a mensagem veiculada por Lula em eventos de campanha de seus aliados na frente amplíssima contra Bolsonaro. A militância de esquerda resiste a ela, pois aprendeu uma lição diferente.

Alckmin já se acostumou às vaias da galera, que só cessam quando Lula começa a discursar. Danilo Cabral (PSB), candidato ao governo de Pernambuco, ouviu os apupos, até ser resgatado por um abraço do candidato presidencial. A hostilidade estende-se a diversos estados, notadamente o Amazonas, onde o PT apoia Eduardo Braga (MDB) e Omar Aziz (PSD), respectivamente para o governo e o Senado, e Mato Grosso, onde o PT alinhou-se ao ruralista Neri Geller (PP), que almeja o Senado.

O ex-presidente Lula ao lado ex-governador Geraldo Alckmin - Gabriela Biló - 28.jul.22/Folhapress

Num passado mais remoto, antes e durante seus governos, Lula ensinou à militância que a corrente de centro-esquerda do PSDB (isso existiu!), organizada ao redor de FHC e Serra, reunia malvados "neoliberais". A lição era o alicerce da estratégia de poder lulista, na qual também cabia a formação de uma base parlamentar fisiológica com a centro-direita.

Num passado mais recente, marcado pelo impeachment de Dilma Rousseff, Lula ensinou que todos, exceto o PT e seus satélites, deviam ser classificados como "golpistas" e (claro!) "neoliberais". O discurso adaptava-se à estratégia de resistência destinada a agrupar as tropas da esquerda num bastião ideológico inexpugnável.

Hoje, Lula deve lançar tudo o que disse à proverbial "lata de lixo da História" –sem, contudo, incorrer no pecado de uma revisão explícita. Na estratégia da frente amplíssima cabe todo mundo, exceto os fieis bolsonaristas dos dias derradeiros. O inimigo do passado converte-se no camarada de campanha do presente. A militância precisa desistir de seus candidatos do coração e distribuir o panfleto do aliado "golpista". Queima o que adoraste, adora o que queimaste!

A costura da frente sem limites é um gesto de sabedoria política. Seu objetivo inicial é encerrar a fatura no primeiro turno, evitando a disputa binária, com seus (mínimos) riscos eleitorais e suas (perigosas) ameaças institucionais. O objetivo mais amplo é construir uma maioria governista capaz de restaurar a normalidade democrática.

Há 20 anos, Lula chegou ao Planalto no tapete mágico de uma democracia funcional. O cenário atual é diametralmente oposto. Para governar, será indispensável cumprir três tarefas prévias: a) secar as fontes da anarquia bolsonarista nos quartéis, indicando um civil para o Ministério da Defesa; b) recuperar a prerrogativa do Executivo de gerir o orçamento público, dissolvendo o "orçamento secreto"; c) redirecionar a atividade política para o Congresso, despolitizando o STF, a PGR e o Ministério Público.

Nada disso será possível com o suporte exclusivo da frente de esquerda – ou seja, por meio da aliança exclusivista PT-PSOL-PCdoB. O tríplice trabalho de Hércules exige um extenso consenso nacional: o pacto "com o diabo e a avó do diabo", na frase célebre do socialista alemão August Bebel. A militância, porém, insiste nas narrativas da caverna, que assimilou como artigos sagrados de fé ideológica.

A desconexão entre os atos (de Lula) e as palavras (da militância) esparrama-se pelas inquietas redes sociais. Nelas, o militante típico insulta eleitores indecisos e oscilantes seguidores de Ciro Gomes, responsabilizando-os por "crimes" inafiançáveis como o impeachment de Dilma ou o triunfo de Bolsonaro. Por essa via, desenrola-se uma campanha eleitoral paralela que, sabotando a campanha oficial, realimenta o antipetismo.

"Esqueçam o que falei". Lula não dirá a frase proibida, pois o papa jamais se equivoca. A campanha dúplice seguirá até o final. Para sorte do PT, o adversário é Bolsonaro.

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