Denise Fraga

É atriz e autora de "Travessuras de Mãe" (ed. Globo) e "Retrato Falado" (ed. Globo).

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Precioso ridículo

Estava parada na calçada esperando o "ação". Uma das assistentes de direção, escondida atrás de um carro à minha direita, falaria a palavra mágica assim que a ouvisse no fone do rádio em seu ouvido.

Estrategicamente posicionados, alguns figurantes esperavam congelados por meu primeiro passo para então acionarem o melhor de suas performances como pedestres. Tudo suspenso, todos se olhavam. Estávamos numa calçada movimentada do centro de São Paulo e por um instante me esqueci que, lá longe, havia uma câmera apontada pra nós.

Crédito: Ilustração Zé Vicente

Eu olhava a assistente, os figurantes me olhavam e uma pequena multidão de curiosos olhava tudo. Que cena era aquela? Talvez muito mais interessante do que a que estávamos por fazer.

Por muitas vezes, tive, no meio do trabalho, um pequeno "insight" do precioso ridículo do nosso ofício. Quando estamos filmando na rua, então, ele grita: a vida correndo histérica, rica e volátil a nossa volta enquanto tentamos aprisioná-la numa cena.

— Ação!

Segurados os pedestres reais, uma senhora furou o bloqueio e, embelezada pelo sol que atravessava a tarde, se meteu cheia de vida em nossa suspensão.

— Era o que faltava! Falar para eu atravessar a rua! Tenho meu serviço!

Desbancando qualquer ator, seu rosto castigado e rabugento trançou em meio aos figurantes esfarelando completamente o sentido do que estávamos fazendo. A vida urge.

Na mesma semana, fizemos outra cena de rua. Dessa vez, na porta de um cinema. O casal acaba de ver um filme, ela sai ainda chorando, quando sua bolsa estoura e eles lutam por um táxi para ir à maternidade. Precisávamos de carros cruzando a fachada. Mas era um flashback. O cinema brasileiro pode até ter verba para carros de época, mas não para trânsito de época. Mais uma vez, o precioso ridículo: fazíamos a cena até ouvir o apito da assistente de direção, congelávamos onde estivéssemos, esperando os Chevettes, Fuscas e Kombis voltarem de ré, continuando a cena até um novo apito, para que nossos poucos carros pudessem cruzar mais um pedaço de nosso arremedo da realidade. Enquanto isso, por ali, em plena vida real, um casal se beijava, outro brigava pra todo sempre e em um táxi qualquer alguém dava à luz outro serzinho para continuar girando a roda.

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