Denise Fraga

É atriz e autora de "Travessuras de Mãe" (ed. Globo) e "Retrato Falado" (ed. Globo).

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Dias velozes de agosto

DE SÃO PAULO

– Ela morreu?

Estremeci com a minha própria pergunta. A interrogação, apesar de precedida pela palavra morreu, não vinha depois de uma notícia trágica, não significava incredulidade, era apenas uma pergunta à espera de uma resposta positiva ou negativa.

Eu simplesmente não me lembrava mais se aquela pessoa tinha morrido ou não. O tempo anda rápido demais, os anos multiplicam fatos, lugares e gentes e havia chegado a hora em que minhas mortes colecionadas já eram em número suficiente para que eu não soubesse ao certo se uma pessoa com quem eu convivi ainda estaria ou não ao alcance de um telefonema. Foi assustador.

– Ela morreu! – eu mesma respondi, finalmente me lembrando, envergonhada.

Minha mãe lembrava bem. Foi ao velório, vivenciou a perda. Nestes tempos ciclônicos, é muito perigoso estar ausente na ocasião da morte de alguém. Num dia caótico, colocamos a notícia em cima da mesa junto com todas as coisas a fazer, não passamos pelo ritual de despedida e corremos o risco de deixar a tia Nilma em sua casinha em Petrópolis para todo o sempre. Se eu não tivesse me lembrado dela por conta das colchas de crochê, não perguntaria nada e a esqueceria em sobrevida eterna no alto da serra. Ou, pelo menos, até que a conta de meus próprios anos viesse me aterrorizar numa tarde qualquer com a certeza da sua morte. Dias velozes. Quem pode com eles?

O último mês foi a prova de fogo.

Uma amiga voltou da Índia e, se não fosse pelos modernos retiros espirituais que podem ser feitos de celular em punho, não conseguiria dar conta em um só golpe das mortes em série desse agosto. Acrescentei Ubaldo à lista e ela chorou. Tinha perdido a notícia.

Fiquei com pena de ter falado. Talvez estranhasse a ausência de suas crônicas, mas poderia tê-lo mantido por aqui, tomando sua habitual cervejinha no bar da esquina, ao fim dos trabalhos no teclado.

Do mesmo jeito que minha tia Nilma continuaria com seu crochê. Está todo mundo muito ocupado, os dias têm sido o que fazemos, a fila anda, a roda gira e a quantidade de acontecimentos nos exigem tamanha velocidade de assimilação que somos capazes de fabricar anjos terrestres circulando por nossa banalidade. Ao menos isso. Que nos protejam!

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