Denise Fraga

É atriz e autora de "Travessuras de Mãe" (ed. Globo) e "Retrato Falado" (ed. Globo).

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Som, fúria e Feliciano

O assunto girava na banalidade enquanto eu tomava o meu vinho, relaxada. Tinha prometido que não ia mais colocar lenha na fogueira e estava torcendo para conseguirmos passar pelo menos aquela noite sem aumentar os decibéis. Afinal, conclusão não havia e, como das outras vezes, voltaríamos para casa com a mesma sensação de impotência.

Mas não teve jeito, o domingo se aproximava e, já no cafezinho, alguém lembrou:

— E aí? Vão de quem?

Começamos tudo de novo, para o desespero dos garçons.

Crédito: ilustração Zé vicente

O assunto eleições apareceu tarde e morno, mas adquiriu tal proporção que fazia tempo que eu não via a política fervilhar nas mesas como no último mês. A total falta de fé em alguém que realmente possa ser um bom governante fez com que nos especializássemos em relativizar.

Expressões como "por um outro lado", "se bem que" e "em compensação" não param de sair de nossas bocas na tentativa de descobrir algumas brechas que possam nos restituir o prazer de ir às urnas.

Tio Sérgio fica sempre calado. Diverte-se, assistindo, do alto de sua sabedoria, ao nosso som e fúria em busca de uma solução pro país. Pois foi na hora em que já estávamos no capítulo "não tem jeito, é muito difícil governar" que ele resolveu se pronunciar:

— Bobagem. Até uma dona de casa sabe o que é prioridade.

— É que não é bem assim... São muitas variantes.

— Mas prioridade todo mundo sabe o que é. Se o filho tá doente, tem que cuidar do filho, antes de trocar o piso da cozinha.

Tio Sérgio nos surpreendeu com a simplicidade de seu raciocínio. A palavra prioridade tomou o centro da mesa e, de repente, tudo pareceu mais simples. Tocados pelo vinho, fomos para casa trocando mensagens num quase campeonato de obviedades.

"Como se constroem viadutos se ainda tem gente morrendo nos corredores dos hospitais?", "Como incentivar o consumo se não temos educação?", "Como falar em liberdade se não temos segurança?", "Como um professor, que seria a primeira prioridade, pode ganhar o que ganha enquanto um deputado vota a lei do seu próprio aumento?"

O fim de semana passou, a segunda-feira chegou e, depois de tanto som e fúria, ainda temos Feliciano e Bolsonaro. Nada é simples.

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