Denise Fraga

É atriz e autora de "Travessuras de Mãe" (ed. Globo) e "Retrato Falado" (ed. Globo).

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Tia Isa e suas dores

Voltávamos do enterro de minha avó. Esta é mesmo uma hora peculiar. Entrar em casa de novo e dar de cara com a ausência. Sentamos por um tempo na varanda, eu, minha mãe, tios e tias, evitando o vazio.

Alguém fez um café e ficamos por ali naquele curioso mastigar da dor.

Vem um assunto, morre rápido, o silêncio, faz-se um comentário sobre um parente sumido que apareceu no velório e, quando nos damos conta, já estamos voltando à banalidade dos dias falando sobre o sapato de alguém ou um programa da televisão.

Todos fugindo do assunto máximo, mascarando o escancarado, fingindo ser eternos.

Bati os olhos em tia Isa.

Crédito: Ilustração Zé Vicente

Não conseguia suspeitar a sua idade. Não tinha reparado no seu envelhecimento.

Tia Isa sempre existiu silenciosamente entre nós. Foi casada com meu tio-avô e continuou morando vizinha à casa de minha mãe. Sempre que estou por lá, vejo-a passar em passo rápido subindo a ladeira.

Olhando-a cabisbaixa na varanda, dividindo a nossa hora de dor, percebi que talvez fosse muito mais velha do que eu imaginava.

Em meio às receitas de bolo que tentavam nos resgatar de volta à realidade, perguntei:

—Com quantos anos a senhora está, tia?
—Oitenta e cinco, filha.
—Nossa! A senhora está tão bem!
—Graças a Deus!
—Não sente dor?
—Muita! Mas isso eu sinto desde os 46! Tenho artrose, filha.

Tia Isa sorri sempre.

Um sorriso como se nada fosse digno de muita atenção.

Tem pessoas que têm no rosto esta estampa.

Um "o que se há de fazer" eterno que parece ajudá-las a tocar os dias.

Era insuspeitável que seus quilômetros a pé fossem percorridos com dor.

Fiz as contas. Eu tinha a mesma idade do começo da dor de Tia Isa. Portanto, desde meus seis anos, ela carregava suas dores sem que eu nunca tivesse reparado.

A conjunção entre uma palavra e um momento pode nos criar um tesouro.

—Muita! — ela disse.

Se tivesse respondido à minha pergunta com um simples "tenho", talvez suas dores não me aparecessem vez por outra para colocar as minhas no chinelo e me empurrar pros quilômetros a percorrer.

Naquela tarde, aquele "muita", dito com total despretensão, distribuiu potentes analgésicos para todos nós, nos capacitando a sair da varanda e enfrentar os dias.

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