Denise Fraga

É atriz e autora de "Travessuras de Mãe" (ed. Globo) e "Retrato Falado" (ed. Globo).

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Chacina, faxina e Lava Jato

O jornal ficou ali, esquecido no banheiro. "Chacina mata 18 em SP; governo suspeita de PMs."

Acordava e lia de novo. Que loucura! Entrava no chuveiro e mais uma vez esquecia de levar a tal notícia pra área de serviço.

No dia seguinte, lia outra vez. Com o passar dos dias, meus olhos passaram a migrar para outras linhas velhas da semana.

O novelão da política, que já vinha desafiando cotidianamente a minha noção de tempo, sempre me fazendo suspeitar ler um jornal vencido, passou então a garantir-me a ilusão de ter em mãos os jornais do dia. Mas, quando fechava o caderno, a manchete gritava, me jogando de novo no sangue escorrido na semana anterior.

Crédito: Ilustração Zé Vicente

Enquanto a manchete me dava a data e o horror, as linhas velhas de sempre tentavam me vencer pelo tédio na viscosa sensação de impotência do começo dos dias. O tempo passava e eu estava sem faxineira.

Tentei primar pelo otimismo.

Escovei os dentes pensando que, pelo menos, ainda não eram as chacinas as notícias de sempre.

Oscilei. Era mentira. Simplesmente não chegavam a ser noticiadas. Se juntássemos em blocos as mortes e atrocidades diárias provavelmente contabilizaríamos muitas chacinas por semana.

Desisti. O jornal ondulado, lido e relido, destroçava com sua simples presença todas as minhas tentativas de manter o otimismo.

Lembrei da frase do Cony, de que sempre tentei duvidar: "O otimista é apenas um mal informado." Prometi arrumar o banheiro e dar um fim no jornal, mas saí mais uma vez apressada, deixando a foto do sangue sendo lavado com balde e vassoura amarelando no piso de azulejo.

Com o passar dos dias, os 18 mortos da chacina viraram apenas o jornal esquecido e a lembrança de que eu precisava fazer alguma coisa a respeito do braço quebrado da faxineira.
Fui engolida pela banalidade. Levei o jornal pra área de serviço quando não havia mais susto em meu olhar e empilhei a chacina na Lava Jato e no Estado Islâmico.

É de assustar.

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