Denise Fraga

É atriz e autora de "Travessuras de Mãe" (ed. Globo) e "Retrato Falado" (ed. Globo).

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O moço do coração amarelo

Me chamou a atenção a camiseta do moço. Tinha um coração amarelo. Cruzou a rua, fazendo com que o motorista do táxi diminuísse a velocidade. Olhava para o céu. Me contorci no banco de trás para acompanhá-lo.

Chegou à calçada calmamente e continuou olhando para as coisas num estado de contemplação muito raro de se ver. Não era um turista. Tampouco parecia estar sob o efeito de alguma droga. Era um homem comum, calmo, olhando as coisas. Todas as coisas. Fui perdendo-o de vista em meio aos carros e me acomodei de volta à janela lateral do táxi, herdeira de seu estado. O meu amigo do coração amarelo parecia perceber o imperceptível e tê-lo notado, notando tudo, aumentou minha capacidade de absorção daquela morna tarde de sábado. Uma moça de bicicleta, algumas pessoas coreografando uma espera num ponto de ônibus, pedaços de salas e quartos pelas janelas e até o próprio motorista de óculos escuros visto pelo retrovisor se entrelaçavam numa poderosa rede de existência diante do novo olhar que eu herdara do moço que olhava para o céu.

Crédito: Ilustração Zé Vicente #ARSAO0410 DENISE

Cheguei ao teatro, tomei meu café e comecei a me maquiar. As pequenas conversas cotidianas foram me devolvendo à realidade. Àquela realidade menos real. Essa nossa vida inventada que teima em nos escamotear o essencial.

Perto das nove horas, tudo preparado, abrimos as portas. Costumamos receber o público na entrada, distribuindo os programas da peça. E foi aí que aconteceu o inesperado. Entre as boas-vindas a um e a outro, dei de cara com a camiseta do coração amarelo. Passou rapidamente por mim, mas não havia dúvida: era o tal moço. Não havia tempo de ir até ele no alvoroço da entrada. Nem saberia o que dizer. Estava boquiaberta com a coincidência. Na verdade, me perguntava se era mesmo uma coincidência. Poderia existir uma chance muito remota de ele ter me visto no táxi e ter decidido ir ao teatro. Mas era muito improvável. Seria ele uma espécie de anjo oculto, enviado para me devolver a atenção ao essencial?

Soou o terceiro sinal e minha concentração voltou para o lugar na forma de um coração amarelo que agora se sentava no meio da plateia e que possivelmente esperava daquela apresentação o mesmo grau de essencialidade que via em todas as coisas. Fiz a peça para o anjo.

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