Denise Fraga

É atriz e autora de "Travessuras de Mãe" (ed. Globo) e "Retrato Falado" (ed. Globo).

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Metades gaguejantes

— Desculpe, resolve aí.

— Não, pode falar. Só tô passando uma mensagem.

— Não, termina aí e a gente fala.

Minha amiga ficou brava comigo. Queria que eu continuasse me comportando como se estivéssemos conversando. Ela falava uma palavra a cada cinco segundos, parecia um robô sem pilha, ria de um jeito falso para demonstrar interesse em minha história e queria que eu também fingisse conversar enquanto ela digitava uma mensagem para Deus sabe quem do outro lado da sua existência. Esperei. Ela terminou de escrever um pouco sem jeito e retomamos a conversa.

Achei boa a técnica. Resolvi aplicar. É milagroso. Uma frase:

— Resolve aí e depois a gente fala.

Alguns se ofendem. Acham mesmo que já adquiriram a tal capacidade de falar com duas pessoas ao mesmo tempo. Tenho vontade de filmá-los. Conseguimos, claro, falar simultaneamente com duas pessoas, mas dividindo o nosso tempo. E, muitas vezes, nossas frases. Socorro! O mundo está rápido demais e tem ficado em câmera lenta! Eu mesma me pego entrando no pântano das sílabas sem perceber. Depois da coragem de falar com minha amiga, resolvi começar a praticar o que não nos fora ensinado.

Crédito: Ilustração Zé Vicente

Sinto que nos faltou um manual de instruções. Ou, no mínimo, de educação. Tudo foi rápido demais e parece que não fizemos um pacto mínimo de regras sociais para usar a novidade. Mas podemos nos lembrar de nossas avós nos instruindo na sala de visitas: é falta de educação demonstrar desatenção.

— Desculpe. Só um minuto. Preciso responder uma mensagem.

Custa dizer? Pedíamos licença para atender o telefone. Por que metemos o dedo no teclado sem a menor cerimônia na frente de nossos interlocutores? Há que estar atento, pois se trata mais de hábito do que de vontade. O caudaloso rio virtual nos levando para outras paragens sem que percebamos o ridículo de nossa metade gaguejante aqui deixada. Ultrajando nossa gentileza.

Em sua recente passagem pelo Brasil, Mick Jagger disse numa entrevista que, do palco, sentiu que seu show parecia estar sendo visto pelos celulares.

Perdoai-nos, Mick, não sabemos o que fazemos. Mal veremos tais fotos e jamais esqueceremos tal performance. Vivemos tempos estranhos em que preferir te ver pela tela de nosso celular pode ser pura declaração de amor. Pena.

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