Denise Fraga

É atriz e autora de "Travessuras de Mãe" (ed. Globo) e "Retrato Falado" (ed. Globo).

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

O destino faz boas tranças

Olhei pelo retrovisor e vi a fumaça que saía do carro. Abri o vidro apesar do frio e senti o cheiro de óleo queimado. Tínhamos parado num posto para abastecer havia alguns minutos e agora estávamos numa estrada deserta com o carro quebrando e nossas pouquíssimas palavras em francês aprendidas no ginásio. Eu e minha adorada amiga Ileana nos aventurávamos pelo bucólico inverno da Provence num carro alugado. O posto de gasolina era do estilo self-service e havíamos colocado o combustível errado. Continuamos o quanto pudemos com o motor pipocando até avistar um supermercado no final da descida. Foi a conta. Empurramos o carro até o estacionamento.

Para mim, o problema estava resolvido. Compraríamos no mercado alguma coisa que servisse como mangueira, um balde e eu bombearia com a boca para retirar o combustível como tantas vezes vi fazer o meu tio taxista. Minha amiga não deixou. Ameaçou chorar dizendo que realmente não saberia lidar com o carro quebrado, aquele frio congelante e eu desmaiada no chão por consumo impróprio de óleo diesel. Foi quando Gerard se aproximou.

Gerard era um senhor grisalho com bigode e costeletas que lhe davam um ar oscilante entre a austeridade e a bondade. Prevaleceu a bondade. Vendo o nosso desespero com o capô do carro aberto, perguntou se podia ajudar. Não podia. Acho que na França ninguém sequer pensa em bombear gasolina com a boca. Mas ajudou com a língua: telefonou para a locadora explicando o que tinha acontecido. Nos restava esperar o resto do dia pela troca do carro.

Antes de seguir para suas compras, Gerard nos convidou para um café. Fui ao toalete. Quando volto, vejo Ileana abraçada ao francês que chorava em seu ombro. Quando soube que vivíamos em São Paulo, ele caiu no choro. O destino faz boas tranças. Tinha um irmão que viera para o Brasil, do qual nunca mais teve notícia. Jamais esquecerei tal cena: toda a barreira da língua desfeita num instante pela urgência da emoção. O que falamos e descobrimos a partir da sensação emocionada de que precisávamos mesmo estar todos ali naquela hora não deixou rastro em minha memória do idioma em que foi falado. Nos despedimos com o endereço. O último paradeiro sabido do irmão de Gerard era uma casa em Interlagos.

Tive o privilégio de ter a amizade de Ileana Kwasinki. Gerard teve a sorte de encontrá-la naquele momento. Quando voltamos para o Brasil, o endereço não correspondia. Eu desisti, mas Ileana não sossegou e dias depois acabou encontrando o irmão do francês que nos salvou. Sem nunca ter ouvido falar sobre a coisa, teceu com endereços, pistas e telefonemas uma autêntica rede social. Tempos depois, recebemos uma foto dos dois juntos em Copacabana.

Crédito: Jean-Paul Pelissier /Reuters Vista noturna do porto de Marselha com a basílica de Notre Dame de la Garde ao fundo, na região de Provença
Vista do porto de Marselha com a basílica de Notre Dame de la Garde ao fundo, na região de Provença
Tópicos relacionados

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.