Denise Fraga

É atriz e autora de "Travessuras de Mãe" (ed. Globo) e "Retrato Falado" (ed. Globo).

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Todos estamos em nossas biografias

A moça fazia suas compras no supermercado. Tinha errado os botões nas casas do casaco. Sempre me dá pena. Uma pessoa com os botões trocados é quase um ícone de solidão. Arrumou-se, saiu, quiçá passou pela portaria, sem ter ninguém para lhe acusar o erro. Pensei em fazê-lo, mas, mais uma vez, o ímpeto de avisar me veio junto com a dúvida. Sabe-se lá há quanto tempo ela estará assim? Sabe-se lá o quanto anda se sentindo só? O quanto eu poderia feri-la sendo o alheio a confirmar-lhe isto? Lembrei de mim nas ruas de Roma.

Certa vez, viajei sozinha. Quando entrei no quarto do hotel, comecei a chorar. Que ideia tinha sido aquela de ser estrangeira sem ninguém ao meu lado? Tive vontade de me enfiar debaixo das cobertas, de ligar a televisão, mas também não conseguia, era a Cidade Aberta que me esperava lá fora.

Aos poucos fui me acalmando. Tomei café, me agasalhei e saí vacilante, de mapa na mão. Era verdade que eu estava em Roma, mas mais do que toda a beleza daquela cidade, foi a vida em movimento, os sons, as gentes, os carros e lambretas que acolheram a insignificância da minha solidão. Era só existir. Comer, andar e existir. Não existe viagem errada. Viajar é só acordar e existir.

Fui ver o Caravaggio, sentei na Piazza Navona e fiquei horas observando como cada turista queria a foto de sua moedinha sendo lançada à Fontana de Trevi. Eu era uma entre tantos e eles quase pareciam meus. Me ampliei. Serenei. Também é bom, solidão.

Já estava voltando para o hotel, quando percebi, refletido em uma vitrine, o meu estado. Talvez eu tenha andado pelas ruas umas boas três horas daquele jeito. Logo depois do almoço, eu havia entrado numa loja para provar uma bota. Não gostei, devolvi pro vendedor e saí da sapataria com a calça dobrada até quase o joelho, deixando de fora minha berrante meia vermelha. Talvez por vingança da venda frustrada, o homem não se deu ao trabalho de me avisar. Quiçá até riu de mim, alegrando um pouco a hora da sesta que seu patrão não o deixa tirar. O fato é que eu andei bastante tempo por Roma exibindo a minha solidão. Mas, àquela altura, o vendedor e seu silêncio já faziam parte da minha biografia. O porteiro do hotel, a garçonete do almoço, os japoneses e até Caravaggio já eram meus familiares do mundo e a única coisa que eu precisava fazer era abaixar a perna da calça e continuar existindo.

Resolvi avisar a moça de seu casaco no supermercado. Sabe-se lá o quanto ela ama estar sozinha? Sabe-se lá o quanto ela sabe que eu sou dela e ela é minha?

Seu franco sorriso de agradecimento me provou que era bem possível que sim.

Crédito: Alessandro Di Meo-29.out.2015/Efe Fontana de Trevi, em Roma
Fontana de Trevi, em Roma

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