Desigualdades

Editada por Maria Brant, jornalista, mestre em direitos humanos pela LSE e doutora em relações internacionais pela USP, e por Renata Boulos, coordenadora-executiva da rede ABCD (Ação Brasileira de Combate às Desigualdades), a coluna examina as várias desigualdades que afetam o Brasil e as políticas que as fazem persistir

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Desigualdades
Descrição de chapéu Folha Mulher

Estatuto da Gestante nega às mulheres estatuto de pessoa

Projeto de lei retira as poucas garantias conquistadas pelas mulheres brasileiras e ainda concede direitos a estupradores

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Católicas pelo Direito de Decidir

Está para ser votado no Senado o Projeto de Lei (PL) 5435/2020, intitulado Estatuto da Gestante, apresentado pelo senador Eduardo Girão (Podemos-CE). Ao contrário do que o nome aponta, contudo, o PL é completamente desfavorável aos direitos reprodutivos das mulheres: institui a chamada “bolsa-estupro” e elimina o direito ao aborto legal já permitido em lei há 80 anos.

Dentre os muitos pontos problemáticos do PL, destacamos dois em particular. O primeiro é o que define a proteção da criança desde a concepção, pretendendo conferir um status jurídico ao feto, o que, na prática, significaria que seria um sujeito de direitos, tal qual uma criança nascida com vida. Nunca houve, contudo, consenso na comunidade científica definindo a concepção como sendo o início da vida humana. É claro que há vida mesmo antes da concepção, nos espermatozóides, no óvulo. Mas não se sabe quando essa vida passa a ser pessoa. Há cientistas que consideram que isso só ocorre no quinto mês de gestação, quando o cérebro é formado, já que só aí pode haver consciência –usando esse raciocínio é que determinamos que a pessoa humana deixa de ser pessoa quando há morte cerebral. Tampouco entre teólogos é consenso que a vida se inicie na concepção.

Essa proposta, na prática, inviabiliza toda e qualquer possibilidade da realização do aborto legal, independentemente de sua motivação e do tempo de gravidez. Ou seja, retira alguns dos poucos mecanismos de proteção da vida, da saúde mental e da saúde física com que podem contar as gestantes brasileiras, uma vez que proíbe a interrupção da gravidez sob qualquer circunstância. Coloca as mulheres e meninas na condição de meras receptoras e reprodutoras de embriões, como se não tivessem vínculos emocionais com sua gestação, e as sujeita a todo tipo de arbitrariedade e sofrimento que essa condição pode lhes trazer.

O segundo ponto que vemos como uma aberração no PL 5435/2020 é a instituição da chamada "bolsa-estupro”, um mecanismo que prevê um auxílio financeiro para as grávidas vítimas de estupro que decidam não abortar. Além disso, proíbe a mulher de negar ou omitir informações sobre a criança para o pai, mesmo que este seja seu agressor. Pela lei, o agressor passa a ter o status de genitor e ganha direitos de paternidade.

O PL supõe que uma mulher estuprada possa ser obrigada a continuar em convivência ou sintonia com seu estuprador. Num país onde um estupro é registrado a cada oito minutos e 70% dos casos acontece em vítimas do sexo feminino menores de 14 anos, essa proposta é aviltante. O auxílio pecuniário é uma nítida tentativa de naturalização da brutalidade cometida contra meninas e mulheres diariamente por meio de incentivo monetário. O estatuto, assim, institucionaliza a violência do estupro.

Embora apresente-se como fruto de preocupação com as mulheres gestantes, o projeto de lei busca sobretudo defender um modelo de “família tradicional” que não respeita a realidade das mulheres que engravidam forçosamente. Isso é injustificável, já que a formação de uma família deveria advir de decisão e escolha mútuas, livres de qualquer violência, de pessoas adultas e conscientes.

Perguntamos aos senhores senadores que pretendem aprovar essa lei: não seriam dignas de tratamento humano as mulheres que correm perigo de vida numa gestação de risco, ou as que são estupradas, ou ainda aquelas que carregam um feto sem condições de vida extrauterina? Não teriam mulheres e meninas direito à dignidade humana para lhes proteger de todo e qualquer tratamento degradante e violento?

Nossa luta contra o PL 5435/2020 tem o objetivo de evitar a violência institucional contra as gestantes que precisam abortar e de defender a dignidade das mulheres.

Mulheres gestantes continuam morrendo por causas evitáveis e, nesta conjuntura de pandemia, não recebem tratamento preferencial no acesso à vacina. As mulheres brasileiras necessitam de acesso ao pré-natal de qualidade, incluindo garantia para alimentação e transporte, licença-maternidade ampliada e atendimento prioritário nos serviços públicos. Além disso, se quisermos efetivamente contribuir para que tenham uma vida mais digna, devemos oferecer provisões e auxílio a todas as gestantes que necessitem deles, sem condicioná-los à sua decisão sobre interromper ou não uma gravidez.

São essas as questões que deveriam ser consideradas na elaboração de políticas públicas de saúde se quisermos de fato garantir a vida das mulheres gestantes.​

Católicas pelo Direito de Decidir é uma organização internacional de mulheres de tradição católica, voltadas à defesa dos direitos reprodutivos e da autonomia das mulheres sobre o próprio corpo

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