Desigualdades

Editada por Maria Brant, jornalista, mestre em direitos humanos pela LSE e doutora em relações internacionais pela USP, e por Renata Boulos, coordenadora-executiva da rede ABCD (Ação Brasileira de Combate às Desigualdades), a coluna examina as várias desigualdades que afetam o Brasil e as políticas que as fazem persistir

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Desigualdades

A desigualdade mata: estamos cansados de ter um alvo nas costas

A engenharia de morte do racismo não se concretiza no momento em que a bala atinge Kathlen ou Gibinha, mas sim no do disparo, que só ocorre no território previsto

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Gisele Brito

Jornalista, mestra em planejamento urbano, militante da Uneafro Brasil e assessora de desenvolvimento de projetos do Instituto de Referência Negra Peregum.

“A gente quer justiça. O nosso povo, o povo pobre, está cansado de dizer. Só mudou o personagem”, afirmou o pai de Kathlen Romeu, uma jovem negra de 24 anos que estava grávida de quatro meses e foi assassinada no último dia 8 durante uma operação policial na zona norte do Rio de Janeiro.

Kathlen é mais uma personagem. Ainda que seu nome passe a significar algo para nós que sentimos, ainda que seu nome jamais seja esquecido e se torne combustível para nossas lutas, Kathlen é só mais uma personagem.

Desde que Kathlen foi morta, a cada 23 minutos morreu um jovem negro no Brasil, segundo o Mapa da Violência, da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso). Desde que Marielle foi morta, uma mulher foi assassinada a cada duas horas no país –68% delas eram negras. Desde que Cláudia foi morta, 75,7% das vítimas de homicídio no Brasil foram negras. Desde que Amarildo foi morto, homens negros continuam tendo um risco 74% maior de serem assassinados do que homens brancos. Esses outros dados fazem parte do Atlas da Violência, produzido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) em parceria com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).

A cada morte, sobem as estatísticas e, com elas, a estafa mental, a depressão, o medo, o ódio que sentem pessoas negras que vivem como se tivessem um alvo nas costas. A cada morte, mais bonitas ficam as homenagens e mais rebuscada fica a exploração da nossa dor. E nada muda.

Kathlen é mais uma personagem. Uma que parece ter sido escrita por alguém que tentava inovar: a garota estava grávida, vivia um relacionamento feliz exposto nas redes sociais, trabalhava na zona sul do Rio e transitava por aí com pinta de modelo, bem distante do estereótipo da mulher favelada. Quem reescreveu a história foram a própria Kathlen e uma família que não fraquejou nessa caminhada, como declarou sua mãe.

Mas a lógica das nossas cidades é infalível. Nos territórios negros, as balas não se deixam enganar por nenhum tipo de subterfúgio e atingem os corpos que a sociedade combinou que pode matar.

A eficiência da ação genocida só é possível graças ao bom funcionamento das instituições que protagonizam o processo. O Estado não distribui equanimemente a riqueza produzida pela população e não opera com justiça em suas decisões. O capital privado espolia quem trabalha e transforma em mercadorias acessíveis apenas para a elite o que deveria ser direito. A mídia se cala e naturaliza tudo isso, servindo à branquitude e às elites. É sempre preciso ignorar que as condições sociais que precarizam a vida são socialmente construídas por esse conluio. ​

As personagens que morreram e morrem no Brasil diariamente, em média a cada 23 minutos, são vítimas do mesmo mecanismo que estigmatiza suas vidas e depois não faz nada para ampará-las. Primeiro, caracteriza seus corpos e territórios como suspeitos, perigosos. Depois fuzila, metralha, bombardeia. Mata.

A concretização da engenharia de morte do racismo não está no momento em que a bala atinge Kathlen ou Gibinha, mas sim no momento do disparo. O disparo só ocorre no território previsto, delimitado para que ocorra. Foi por ocorrer lá mais uma vez e ter atingido mais uma vez a personagem correta é que sabemos que acontecerá de novo.

Enquanto este texto estava em construção, isso já aconteceu e novos nomes se juntaram a essa lista. Na última quarta (9), os jovens negros Felipe Barbosa da Silva, 23, e Vinícius Alves Procópio, 19, foram executados por dois policiais militares após perseguição. Segundo a Política Militar (PM), eles haviam roubado o carro em que estavam.

O vídeo que circulou nas redes sociais mostra o momento em que os jovens já estavam rendidos dentro do carro –após baterem em um poste–, o que não impediu os PMs de dispararem em frente às portas do veículo, na direção de seus ocupantes. Ao todo, mais de 20 perfurações de bala foram encontradas nos corpos dos jovens. Diante dos fatos, a corregedoria da polícia instaurou inquérito contra os PMs e os afastou da rua. Segundo o ouvidor do próprio órgão, Elizeu Soares, há “suspeita de execução na ação policial contra os suspeitos”.

Com todos esses acontecimentos, novas homenagens serão feitas e hashtags ganharão engajamento. Outras indignações serão expostas. Outras pessoas serão conscientizadas de que há um genocídio em curso no Brasil desde antes da Covid-19. À custa de mais uma mãe que chora, de um filho perdido, de uma família quebrada.

Não há nada novo a dizer. Nos solidarizamos com Kathlen e com os demais pretos mortos antes deste texto ser publicado. Seguimos agindo antes do próximo corpo cair. É entre um minuto de silêncio e outro que evitamos as mortes.

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