Desigualdades

Editada por Maria Brant, jornalista, mestre em direitos humanos pela LSE e doutora em relações internacionais pela USP, e por Renata Boulos, coordenadora-executiva da rede ABCD (Ação Brasileira de Combate às Desigualdades), a coluna examina as várias desigualdades que afetam o Brasil e as políticas que as fazem persistir

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Desigualdades
Descrição de chapéu Folhajus

'O meu sonho é ter uma conta de luz e água no meu nome', diz egresso do sistema prisional

Sentenças de exclusão: mesmo depois da pena, egressos do sistema carcerário têm de arcar com multas impagáveis, que impedem a reconstrução da vida

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Emerson Ferreira

Fundador do Reflexões da Liberdade, é membro do Conselho Penitenciário de SP, Global Shaper no Fórum Econômico Mundial e membro do Catalyst 2030

Marina Dias e Vivian Calderoni

Respectivamente, diretora-executiva e coordenadora de programas do IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defesa)

"O meu sonho é ter uma conta de luz e de água no meu nome. Uma coisa boba. Eu não quero ser rico. Só quero ter uma conta no banco, ter um emprego. Mas as portas foram fechadas para mim, porque eu não tenho título de eleitor". Essa é a história real de um egresso do sistema prisional que participa do projeto Reflexões da Liberdade. Ele já cumpriu pena, mas continua impedido de reconstruir a vida pois foi também sentenciado a pagar uma multa com a qual não consegue arcar. A história é comum entre quem já passou pelo cárcere no Brasil.

A justiça criminal é um dos mecanismos mais perversos de aprofundamento do racismo e da desigualdade social. Uma das facetas ainda pouco debatidas dessa máquina de moer gente é a multa penal, prevista no Código Penal e em outras leis. Podemos afirmar que ainda hoje nosso país possui um sistema perfeitamente legal de discriminação, amparado pela legislação, que segrega e impõe uma punição que pode se estender para o resto vida. Uma pena perpétua, que não deveria existir.

Corredor de um presídio
Presídio em Sorocaba (SP) - Defensoria Pública -22.jun.2020/Divulgação

A legislação estabelece que, em alguns tipos de crime, as condenações devem incluir o pagamento de uma multa, além da pena de prisão. Ou seja, o egresso que tiver sido sentenciado também à sanção pecuniária —comum em condenações por crimes de tráfico e furto— segue em dívida com o Estado, mesmo após sair pela porta da frente da prisão. Enquanto o débito não é pago, a pena não é considerada cumprida e os direitos políticos seguem suspensos. Muito frequentemente os valores são impagáveis, sobretudo, para alguém que está tentando reconstruir a vida após sobreviver ao cárcere.

Sem certidão de quitação das obrigações eleitorais, a pessoa é tragada para a informalidade, ficando impossibilitada de exercer direitos básicos de cidadania. É inscrita num cadastro de inadimplentes, não podendo regularizar seu CPF. Assim, não tem como acessar programas assistenciais do governo; não pode se matricular em instituições de ensino superior; tomar posse em serviço público; abrir conta no banco; manter cobrança de serviços como fornecimento de energia elétrica em seu nome, o que acarreta dificuldades na comprovação de residência fixa; entre outras formalidades que são porta de entrada para direitos garantidos aos brasileiros.

Não se pode ignorar que muitas dessas pessoas sequer foram incluídas na sociedade, sem jamais terem condições de exercício pleno da cidadania, representado pelo acesso universal e igualitário à saúde, à educação, à segurança e à justiça. Não por acaso são as mesmas pessoas atiradas num sistema prisional absolutamente falido, dominado por facções criminosas e que, ao saírem, têm a sua possibilidade de inserção social ainda mais dificultada em razão do estigma da condenação criminal.

Muitos nem sabem que ainda estão devendo ao Estado e descobrem apenas quando estão prestes a conseguir um trabalho, dada a necessidade de apresentar sua documentação ao empregador (como inclusive aconteceu na história que citamos no início deste artigo). A pena de multa vem empurrá-los para uma condição de marginalidade para toda vida.

Outra dimensão nefasta é a retirada dos inadimplentes da participação nas eleições. A maior parte das pessoas que enfrentam esse problema são jovens negros e periféricos, o que significa dizer que este grupo está sendo alijado do processo democrático, inclusive ao ser impedido de participar da escolha de projetos políticos para seu país. Em dezembro de 2020, eram mais de 800 mil pessoas presas no Brasil, segundo o DEPEN (Departamento Penitenciário Nacional), sendo que a cada três encarcerados, dois eram negros. Algo extremamente grave, pois se traduz em mais uma forma de perpetuação de um ciclo de exclusão social e racismo que forjam a violência, a fome e a falta de representatividade plena para parte da sociedade.

O problema é grave, mas costuma receber pouca atenção no debate público a respeito de questões para a superação das desigualdades no país. Não se sabe ao certo, por exemplo, o número de brasileiros que se encontram nessa situação. Dados obtidos pela Defensoria Pública de São Paulo em consulta ao Departamento Estadual de Execução Criminal do Tribunal de Justiça do Estado mostram que, só neste corte, em março de 2021, tramitavam mais de 64 mil processos digitais de execução da pena de multa.

A lei de drogas brasileira estabelece um teto de 4.000 dias-multa, enquanto no Código Penal o máximo é de 360 dias. O maior valor que um dia-multa pode custar é de cinco vezes o valor do salário-mínimo na data do crime. O fato de que aproximadamente 250 mil pessoas presas são acusadas ou condenadas por crimes ligados à Lei de Drogas —para os quais a sentença de multa é comum— mostra a escala do problema.

São milhares de presos em flagrante com pequenas quantidades de droga saindo das masmorras do nosso sistema carcerário com dívidas que já seriam difíceis de quitar por quem goza de plena liberdade. Para um delito de tráfico de drogas praticado hoje, o valor mínimo da pena de multa gira em torno de 18 mil reais e o máximo de 8,25 milhões. Não importando valor, quantidade ou circunstâncias da substância apreendida.

Mas há esperança. Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça consolidou entendimento, no âmbito de um Recurso Repetitivo da Defensoria Pública de São Paulo, de que quando houver pena privativa de liberdade mais multa, aquele que conseguir comprovar impossibilidade de quitar a dívida, terá sua pena considerada cumprida. Com isso, a pessoa recupera os seus direitos políticos.

A decisão culminou no estabelecimento de uma tese que leva o STJ a julgar casos semelhantes da mesma forma. Os Tribunais Estaduais não são obrigados a seguir, mas sem dúvida é um grande passo para a mudança na realidade de milhares de pessoas. A batalha continua grande, pois, não é incomum que instâncias estaduais não sigam o precedente.

O sistema de justiça brasileiro precisa colocar um ponto final nessas sentenças de exclusão para que todos possam ter uma conta de luz e água no seu nome. Uma coisa boba. Um sonho.

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