Desigualdades

Editada por Maria Brant, jornalista, mestre em direitos humanos pela LSE e doutora em relações internacionais pela USP, e por Renata Boulos, coordenadora-executiva da rede ABCD (Ação Brasileira de Combate às Desigualdades), a coluna examina as várias desigualdades que afetam o Brasil e as políticas que as fazem persistir

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Desigualdades
Descrição de chapéu vale do javari

Desaparecimentos no Vale do Javari expõem sucateamento da Funai

Caso envolvendo indigenista e jornalista traz à tona vulnerabilidades dos povos indígenas diante de políticas deliberadas de enfraquecimento do órgão federal

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Rafael Nakamura

Jornalista e mestrando em antropologia. Trabalha como assessor de comunicação no Centro de Trabalho Indigenista (CTI), organização que atua no Vale do Javari há mais de 20 anos

O desaparecimento do indigenista Bruno Araújo Pereira e do jornalista inglês Dom Phillips na região do Vale do Javari, extremo oeste do Amazonas, próximo da tríplice fronteira entre Brasil, Peru e Colômbia, é revelador das desigualdades enfrentadas por comunidades indígenas em todo o país. O caso, que ganhou as manchetes dos principais jornais do Brasil e do mundo, suscitou o debate sobre as vulnerabilidades às quais os povos da terra indígena Vale do Javari estão submetidos e sobre o aumento exponencial de casos de violência na região, ambos causados pelo gradativo sucateamento dos órgãos envolvidos na proteção do território.

O aprofundamento das desigualdades aqui se expressa nos investimentos do Estado brasileiro, cada vez menores, destinados à efetivação dos direitos das populações indígenas. Bruno Pereira e Dom Phillips atuavam para fortalecer iniciativas dos povos indígenas para combater invasões de seu território, cada vez mais necessárias diante do abandono pelo Estado de seu papel fiscalizador. Entre colocar as próprias vidas em risco ou ver seu território ser degradado pela invasão predatória ilegal, ligada diretamente ao mercado formal, indígenas estão escolhendo tentar algum futuro para suas comunidades e, para isso, buscando apoio de parceiros, mesmo que isso signifique assumir riscos elevados.

Indígenas fazem protesto em defesa de seus territórios e em homenagem Bruno e Dom, em Atalaia do Norte (AM), neta segunda-feira (13) - Pedro Ladeira/Folhapress

Um levantamento feito pelo colunista do UOL Carlos Madeiro aponta que, nos últimos dez anos, o quadro efetivo da Funai (Fundação Nacional do Índio) atuando na Amazônia Legal caiu pela metade. De 1.360 integrantes em 2013, passou-se para 689 em janeiro de 2022. Considerando o território nacional inteiro, em 2013 a Funai tinha 2.505 servidores efetivos. Em janeiro deste ano, são 1.437.

Levantamento feito pelo ex-servidor da Funai Helton Soares dos Santos e citado pelo jornalista Ciro Barros em matéria para a Agência Pública aponta que 101 das 240 Coordenações Técnicas Locais da Funai contavam com menos de dois servidores ativos em 2017. Destas, 22 não contavam com nenhum servidor ativo. Também ilustrando o cenário de sucateamento, dados levantados pelo Inesc (Instituto de Estudos Socioeconômicos) em 2020 apontavam que o orçamento total da Funai representava apenas 0,02% do orçamento da União.

Falamos, portanto, de um abandono intencional pelo Estado brasileiro de seu órgão indigenista, responsável pela efetivação de direitos dos povos indígenas do país. Em regiões com altos índices de floresta preservada, caso de boa parte da Amazônia, esse abandono significa lavar as mãos em relação às invasões que, nos últimos anos, chegaram a patamares jamais vistos. Em outras regiões, como Sul, Sudeste e Nordeste do país, esse descaso significa deixar as comunidades indígenas abandonadas à sua própria sorte, resistindo mesmo sem acesso a terras regularizadas e a políticas públicas para garantir direitos básicos como o direito à água, ao saneamento básico, à saúde e à educação.

Mais do que ausência do Estado, o sucateamento e o abandono são parte de uma atuação deliberada do atual governo, com a clara intenção política de promover falsas soluções envolvendo a abertura das terras indígenas para a exploração privada de seus recursos.

Soma-se a este cenário trágico a desigualdade no acesso à Justiça para os casos envolvendo vidas de indígenas e de seus parceiros. São numerosos os casos recentes de assassinatos de indígenas que lutavam por seus direitos e pela proteção de seus territórios e que não tiveram nenhum desfecho. Segundo o relatório "Violência contra os Povos Indígenas no Brasil", editado anualmente pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi), entre 2019 e 2020, os casos de violência contra os povos indígenas tiveram aumento de 61%, com 182 casos registrados durante esse período.

Especificamente na região do Vale do Javari, há menos de três anos, Maxciel Pereira dos Santos, indigenista que atuava em uma das bases de proteção daquela terra indígena, foi assassinado com dois tiros na nuca enquanto transitava pelas ruas de Tabatinga (AM). A Polícia Federal do Amazonas abriu um inquérito para apurar o crime, mas até hoje a investigação não foi concluída e nenhum suspeito foi indiciado.

Antes de sua morte, a União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja), organização indígena que reúne entidades dos povos da região, já havia levado ao poder público diversas denúncias de investidas de invasores com armas de fogo contra as bases de proteção.

No caso atual do desaparecimento de Bruno e Dom, o poder público só movimentou as buscas com equipes das forças de segurança após ter sido intensamente cobrado pela Univaja e pela opinião pública, somada à imprensa internacional, que se sensibilizou com o caso. Foi preciso uma decisão da Justiça federal e uma segunda ordem do Supremo Tribunal Federal para que o atual governo colocasse à disposição todo o aparato de Estado para as buscas.

Ao exigir o máximo empenho do governo brasileiro nas buscas por aqueles que dedicam suas vidas à defesa de direitos dos povos indígenas, chamamos atenção para a necessidade de reduzir desigualdades no acesso à Justiça. Para isso, é preciso investir nos órgãos responsáveis pela efetivação de direitos e pela participação indígena na construção de políticas públicas que lhes permitam formular projetos de futuro para suas comunidades. Obviamente, essas perspectivas não se efetivarão sob esse governo, que parece atuar precisamente na contramão das reais necessidades dos povos indígenas.

Jornalista e mestrando em antropologia. Trabalha como assessor de comunicação no Centro de Trabalho Indigenista (CTI), organização que atua no Vale do Javari há mais de 20 anos

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