Desigualdades

Editada por Maria Brant, jornalista, mestre em direitos humanos pela LSE e doutora em relações internacionais pela USP, e por Renata Boulos, coordenadora-executiva da rede ABCD (Ação Brasileira de Combate às Desigualdades), a coluna examina as várias desigualdades que afetam o Brasil e as políticas que as fazem persistir

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Desigualdades

Economia solidária como estratégia para enfrentar a desigualdade

Auto-organização dos trabalhadores em empreendimentos econômicos solidários é estratégia democrática de redução da desigualdade

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Valmor Schiochet

Doutor em Sociologia (UnB), Professor da Universidade Regional de Blumenau (FURB/SC), membro do Instituto Paul Singer

Marcelo G. Justo

Sociólogo, doutor em Geografia (USP) e diretor executivo do Instituto Paul Singer

Relatórios internacionais e estudos comparados divulgados de forma recorrente na imprensa reiteram o fato de que o Brasil é um dos países mais desiguais do mundo. E a desigualdade em nosso país não é conjuntural, mas histórica e estrutural e, por isso mesmo, de difícil enfrentamento.

Trata-se de uma desigualdade empedernida nas entranhas da nossa sociedade, que resiste e se ampliou com as políticas de recorte neoliberal dos anos 1990 e as políticas (ou antipolíticas) do autoritarismo ultraneoliberal do período recente. Mesmo as políticas distributivas que caracterizaram os governos de Lula e Dilma tiveram impactos variados conforme as metodologias e os indicadores utilizados para avaliá-las.

Um destes estudos, elaborado pelo insuspeito Insper, demonstrou que sim, essas políticas tiveram impacto positivo. No entanto, no período pós-golpe, a situação rapidamente se deteriorou, e a pandemia fez ressurgir a escandalosa desigualdade como expressão da nossa realidade nacional.

A desigualdade em nosso país não é conjuntural, mas histórica e estrutural e, por isso mesmo, de difícil enfrentamento
A desigualdade em nosso país não é conjuntural, mas histórica e estrutural e, por isso mesmo, de difícil enfrentamento - Mathilde Missioneiro - 2.dez.21/Folhapress

A desigualdade se enfrenta com democracia, e a economia solidária é uma experiência recente que aposta na radicalização da democracia como forma de organização socioeconômica do povo afetado pelas sucessivas crises. A emergência desta nova onda histórica do associativismo, do cooperativismo e do comunitarismo econômico foi uma resposta frente à crise que se abateu com a ascensão do neoliberalismo e da financeirização da economia.

A economia solidária também é parte da nova onda de mobilização social alternativa iniciada nos anos 1960 e ampliada nos movimentos democráticos de base na década de 1980, em oposição ao socialismo real burocrático, à burocratizada social-democracia europeia e ao autoritarismo militar na América Latina e África. Ou seja, a economia solidária foi uma resposta democrática dos movimentos sociais ao capitalismo e ao socialismo real.

No Brasil, sua base social é popular composta principalmente por camponeses, agricultores familiares, produtores agroecológicos, catadores de materiais recicláveis, operários de fábricas recuperadas, produtores artesanais, trabalhadores/as autônomos/as, agentes culturais e muitos outros. A forma de organização é associativa, cooperativa, comunitária, participativa e autogestionária. Sua articulação ocorre por meio da formação de redes de cooperação e práticas federativas ou confederativas. Tem uma face feminina, preta, mestiça.

É notória a contribuição deste tipo de organização econômica para incluir pessoas em situação de vulnerabilidade, promover processos de recuperação de empresas falidas, além de fomentar o desenvolvimento sustentável e a democratização da economia.

Inúmeros exemplos podem demonstrar tal contribuição: associações e cooperativas de usuários da saúde mental; cooperativas e redes de reciclagem de materiais organizadas e geridas por catadores; complexos cooperativos que recuperaram empresas por meio da autogestão; redes de colaboração solidária no Semiárido, Cerrado e Amazônia e redes de produção agroecológica, cooperativas da agricultura familiar e assentamentos de reforma agrária; pontos de cultura comunitários nas periferias urbanas; uma vasta produção artesanal organizada sob forma associativa e cooperativa, a emergente organização de cooperativas de plataforma, cooperativas de prestação de serviços profissionais e multiprofissionais, crédito cooperativo, bancos comunitários de desenvolvimento, fundos rotativos de crédito etc.

Com estas características e bases sociais, a economia solidária não se limita a atuar em processos distributivos e projetos sociais de acessos a bens e serviços. Para que a economia solidária se constitua efetivamente, exige processos redistributivos não somente da riqueza sob forma de renda, mas fundamentalmente da riqueza enquanto patrimônio.

A economia solidária exige acesso dos povos e comunidades à terra, às águas, à floresta, aos biomas por meio da demarcação de terras ou estabelecimento de reservas extrativistas. A economia solidária pressupõe acesso das pessoas aos meios de produção e distribuição e a apropriação coletiva dos resultados dos processos econômicos.

Tampouco estamos aqui tratando de uma economia cooperativa privatizada, mas de uma economia social e pública. Na experiência brasileira, a economia solidária busca uma articulação democratizada com a economia pública, incluindo a adoção de políticas públicas democratizantes quanto ao acesso aos bens e serviços públicos. São coerentes com políticas de compras governamentais, a exemplo dos programas de aquisição de alimentos, que contribuíram de forma decisiva para a manutenção da produção camponesa, de um lado, e o enfrentamento da fome e miséria, de outro.

Enfim, a economia solidária pode se constituir numa efetiva estratégia democrática de redução da desigualdade num país onde a própria desigualdade coloca em risco os avanços democráticos. O projeto de desenvolvimento econômico e de redução das desigualdades dos próximos governos federal e estaduais deveria priorizar, em paralelo à geração de empregos, a auto-organização dos trabalhadores em empreendimentos econômicos solidários para a geração de trabalho e renda.

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