Desigualdades

Editada por Maria Brant, jornalista, mestre em direitos humanos pela LSE e doutora em relações internacionais pela USP, e por Renata Boulos, coordenadora-executiva da rede ABCD (Ação Brasileira de Combate às Desigualdades), a coluna examina as várias desigualdades que afetam o Brasil e as políticas que as fazem persistir

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Desigualdades
Descrição de chapéu refugiados

Políticas de imigração ainda promovem distribuição desigual e racializada da liberdade de se mover

Muitas das pessoas barradas nas fronteiras do Norte Global nasceram em países do Sul Global que foram empobrecidos por histórias de colonialismo e império

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Angelo Martins Junior

Professor no Departmento de Social Policy, Sociology and Criminology, University of Brimingham, UK. Autor do livro 'Moving Difference: Brazilians in London' (Routledge, 2020)

Clarissa Paiva Guimarães e Silva

Assessora técnica nacional na Cáritas brasileira para a pauta de migração e refúgio. Mestra em Direitos Humanos pela Universidade de São Paulo

A mobilidade é fundamental para a vida humana e integral às ideias de liberdade e igualdade. Os deslocamentos de curtas ou longas distâncias, seja para lazer, trabalho, reunião familiar, educação, saúde, pesquisa ou aventura, sempre foram parte essencial da vida econômica, social, cultural e política da humanidade.

Como argumentou o teórico político Thomas Hobbes no século 17, somos matéria em movimento. Mas ser capaz de se mover livremente de um lugar para outro é um privilégio no mundo contemporâneo. Ideias sobre mobilidade humana, diferenças e desigualdades, portanto, estão necessariamente entrelaçadas.

Quando pessoas do Norte Global (especialmente aquelas racializadas como brancas) se movem pelo mundo, normalmente são imaginadas como turistas, estudantes, intercambistas, viajantes a negócios, expatriados, e assim por diante, enquanto aquelas do hoje chamado Sul Global (frequentemente racializadas como não brancas quando se movem) são consideradas "migrantes".

Foto de 2017 mostra migrantes líbios esperando para serem resgatados após o barco inflável em que estavam tentando atravessar o mar Mediterrâneo para chegar à Europa furar
Foto de 2017 mostra migrantes líbios esperando para serem resgatados após o barco inflável em que estavam tentando atravessar o mar Mediterrâneo para chegar à Europa furar - Abdullah Elgamoudi - 20.mar.17/AFP

A mobilidade deste último grupo é imaginada principalmente em termos dos binários conceituais do legal/ilegal —as pessoas que se movem o fazem legalmente ou como criminosas (chamadas "imigrantes ilegais")— e do voluntário/forçado —ou seja, escolhem se mudar ou são obrigadas a sair por forças incontroláveis.

Ambos os binários são altamente moralizados e contribuem para que algumas pessoas em movimento sejam vistas como vítimas merecedoras de proteção enquanto outras são estigmatizadas como criminosas, indignas de serem móveis.

Tal sistema de julgamento molda o atual regime de controle estatal nacional sobre a mobilidade humana, legitimando, muitas vezes, medidas iliberais e violentas usadas por atores estatais para suprimir a mobilidade "não autorizada" de grupos particulares pelas fronteiras do Norte Global.

Contudo, como argumenta Harsha Walia (2021), as fronteiras são o produto de histórias de expansão territorial violenta, colonialismo e escravidão, histórias que também produziram racismo. Por meio dos empreendimentos coloniais da Europa no passado, liberdade e não-liberdade foram distribuídas ao longo das linhas raciais, e a mobilidade emergiu como um conceito relacional.

A mobilidade dos colonos dependia da imobilidade daqueles que foram colonizados e escravizados (Brace 2015). Hoje, fronteiras e racismo operam para manter uma forma de apartheid global neocolonial. A distribuição desigual e altamente racializada da liberdade continua.

Presos pela polícia dos Estados Unidos ao atravessarem a fronteira do México para Yuma, no Arizona, migrantes aguardam para serem registrados pela patrulha norte-americana
Presos pela polícia dos Estados Unidos ao atravessarem a fronteira do México para Yuma, no Arizona, migrantes aguardam para serem registrados pela patrulha norte-americana - Allison Dinner - 11.jul.22/AFP

O recém-proclamado princípio da igualdade soberana dos Estados, juntamente com os processos de descolonização e de aprofundamento da desigualdade político-econômica global no século 20, transformaram os passaportes em uma ferramenta do apartheid racista global. Com o fim dos impérios, a maioria dos povos anteriormente colonizados do mundo continuou a sofrer com passaportes de "terceira categoria".

De acordo com o Henley Passport Index, o qual ranqueia passaportes de acordo com o número de destinos que seus titulares podem acessar sem visto, aqueles que possuem passaportes poderosos são principalmente cidadãos dos Estados desenvolvidos do Norte Global, enquanto os portadores de passaportes "ruins e questionáveis" vêm majoritariamente do Sul Global.

Ou seja, muitas das pessoas barradas nas fronteiras do Norte Global nasceram em países do Sul Global que foram empobrecidos por histórias de colonialismo e império e, hoje, são emissores de passaportes que estão entre os mais fracos do mundo. E agências de fronteira permanecem desempenhando a função racista que desempenhavam antes de serem obrigadas, por lei, a respeitar os direitos humanos.

Como resultado, inúmeras pessoas são torturadas e mortas todos os anos tentando atravessar o Mediterrâneo ou o deserto do Arizona para evitar um sistema punitivo que as exclui arbitrariamente com base em fatores sobre os quais elas não têm controle: a localização, as circunstâncias e as características de seu nascimento.

A organização United for Intercultural Action documentou, por exemplo, a morte de mais de 40.555 refugiados e migrantes entre 1993 e 2020 que são atribuíveis às políticas restritivas de imigração da União Europeia (ONU 2020). Atores estatais também são diretamente responsáveis pelas mortes resultantes de ações de "retorno".

Migrante mostra ferimentos sofridos na Líbia antes de tentar atravessar o mar Mediterrâneo rumo à Europa; ele foi salvo pelo barco ambulância da organização Médicos Sem Fronteiras
Migrante mostra ferimentos sofridos na Líbia antes de tentar atravessar o mar Mediterrâneo rumo à Europa; ele foi salvo pelo barco ambulância da organização Médicos Sem Fronteiras - Alexandros Kottis - 28.abr.22/AFP

Uma reportagem recente do jornal inglês The Guardian revelou que os Estados-membros da UE usaram operações ilegais para afastar pelo menos 40 mil solicitantes de asilo das fronteiras da Europa em 2020, usando métodos que levaram à morte de mais de 2.000 pessoas. Documentando "práticas de retorno" ilegais nos Balcãs ocidentais, a Rede de Monitoramento da Violência de Fronteira constatou que abuso e força desproporcional estavam presentes em quase 90% dos depoimentos, incluindo exemplos de migrantes sendo chicoteados, roubados, despidos e abusados sexualmente por membros da polícia croata (Tondo 2021).

Relatos de violência igualmente terrível por parte dos oficiais da patrulha de fronteira dos EUA também são comuns, e há casos de mortes após processos de deportação (HRW 2020, 2022). A UE e seus Estados-membros também fornecem assistência financeira, material e técnica à Guarda Costeira Líbia, capacitando-a a interceptar migrantes e refugiados para devolvê-los a centros de detenção na Líbia, onde estão sujeitos a tratamento cruel, desumano e degradante em violação do direito internacional (HRW 2019).

Uma pesquisa realizada por Angelo Martins Jr e Julia O’Connell-Davidson demonstra também que diversas medidas decretadas por Estados na Europa, América do Norte e Austrália desde a década de 1990 para barrar a "migração indesejada" se apresentam como versões de alta tecnologia das técnicas projetadas pelos Estados escravistas para restringir a mobilidade das pessoas escravizadas no passado.

Hoje, além de patrulhas armadas que monitoram as fronteiras, há cercas de arame farpado e drones. Estados escravistas multavam capitães de navio que ajudavam fugitivos a fugir; hoje, há sanções contra navios e aviões que transportam passageiros sem os devidos documentos.

Sistemas de vigilância que combinam radar, câmeras e tecnologia de raios-X são usados para escanear caminhões comerciais nos portos. O uso de câmeras termográficas em portos da França, Bélgica e Holanda incentivou migrantes e refugiados a se esconderem em caminhões com contêineres refrigerados, onde os scanners não conseguem detectar com tanta facilidade o calor dos corpos, mas nos quais o risco de asfixia é muito maior, como demonstra o caso dos 39 vietnamitas encontrados mortos em um caminhão em Essex, Reino Unido, em 2019.

Os riscos enfrentados por migrantes durante sua viagem do Brasil aos EUA, por exemplo, também são resultados de políticas de externalização semelhantes adotadas pelos EUA para tentar restringir o movimento por sua fronteira sul.

Em suma, o atual regime de controle estatal nacional sobre a mobilidade humana é projetado com o propósito de excluir pessoas "indesejadas". A fim de imobilizar essas pessoas ou obrigá-las a se mudarem para lugares que não desejam ir, os Estados do Norte Global desenvolveram um sistema global e extremamente violento de fronteiras militarizadas, deportações, esquemas de repatriação, campos de refugiados, centros de detenção e ilhas prisionais onde direitos humanos, liberdades e dignidade são rotineiramente e horrivelmente violados.

A violência dos regimes de imigração é a força central que molda as experiências de muitas pessoas do Sul Global, principalmente os não pertencentes à elite local. As políticas de externalização fronteiriça da UE estão chegando longe no continente africano, restringindo e negando às pessoas o direito de locomoção.

Quando adentramos o campo das humanidades digitais, constatamos que gênero, geografia, raça, renda, e uma série de outros fatores sociais e econômicos desempenham um papel na forma como a informação será produzida e reproduzida para fiscalizar e regularizar o processo migratório através de ferramentas tecnológicas.

Assim, para responder às diferentes demandas no processo de solidariedade e acolhida a população migrante e refugiada no Brasil, a Cáritas Brasil, em força-tarefa com a Cáritas Equador, investiu no aplicativo e plataforma virtual MigraSegura, que fornece informações sobre proteção, serviços humanitários, acesso a direitos e políticas públicas às pessoas em situação de mobilidade humana.

As organizações e iniciativas do terceiro setor precisam estar atentas e comprometidas com a dignidade da pessoa humana nesse passo apressado da globalização, buscando sempre informar e atualizar as pessoas que estão em deslocamento para evitar que mais vidas sejam perdidas.

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