Djamila Ribeiro

Mestre em filosofia política pela Unifesp e coordenadora da coleção de livros Feminismos Plurais.

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A primeira vez que eu vi o mar

Enfrentar obviedades é reconhecer o tamanho do mar, mas quem tem coragem?

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"Olha para você e olha para o mar. Olha o tamanho do mar." Foi assim que, de modo muito simples, meu pai me ensinou uma lição. Sempre conto esse episódio porque me vejo mergulhada nele.

Eu, criança, nascida com o pé na areia, nadava até o fundo sem perceber os perigos. Num dado momento, ao perceber que eu não o escutava, ele, caiçara, me pegou pelo braço e calmamente me fez perceber meu tamanho diante daquela imensidão. Na mesma hora, entendi.

Num primeiro momento, senti medo de toda aquela imensidão ao me dar conta do meu tamanho e perceber que poderia ser engolida a qualquer momento.

Nunca mais tive a prepotência de desafiar o mar, nado até onde ele me permite. Ao adentrar o mar, é preciso retidão. Talvez por isso eu tenha escutado tantas músicas que reverenciam o mar e tenha aprendido com elas. Quando penso nas vaidades que cegam, nas dores, sempre me lembro do mar e penso que nada pode ser tão grande. "E quando vejo o mar, existe algo que diz que a vida continua e se entregar é uma bobagem", cantava Renato Russo.

Ilustração
Linoca Souza/Folhapress

Quando vejo mulheres sendo reduzidas às suas aparências ou a assuntos sem importância, lembro da lição do meu pai. Quando cursava filosofia, quase ninguém conhecia a obra de Simone de Beauvoir, mas a grande maioria sabia do seu relacionamento com Sartre, das amantes, de picuinhas da vida pessoal.

Sempre que eu apresentava um trabalho sobre a obra dela, alguém me perguntava: "É verdade que ela tinha vários amantes?". Geralmente, eu ignorava e respondia a questões sérias. Beauvoir escreveu uma obra filosófica sobre a condição feminina em 1949, obviamente foi atacada, geralmente o que acontece com todas amulheres que desafiam seu tempo.

Desafiar a neutralidade epistemológica, refletir sobre a realidade concreta da mulher, criticar o que muitos filósofos escreveram sobre as mulheres não foi tarefa fácil. Lembro do meu encantamento ao descobrir toda a potência de suas reflexões. "Foi assim, como ver o mar", além de dividir o mar Vermelho.

"Beauvoir foi bastante atacada, não foi uma unanimidade, o que você tem a dizer sobre isso?", perguntavam-me em debates. Nada. Posso responder às críticas embasadas que ela recebeu de outros pensadores, o que é próprio da tradição filosófica, mas isso aqui não é o "Fofocas Filosóficas". Olha o tamanho do mar, quase respondia.

Aposto que quem faz uma pergunta dessas também não é unanimidade, aliás, ninguém é, provavelmente colegas de trabalho e até pessoas da família podem não gostar dela, mas queria que uma mulher do tamanho de Beauvoir fosse ponto pacífico. É concurso de popularidade e eu me perdi?

Eu queria debater as ideias dela, o significado filosófico de "não se nasce mulher, torna-se", entender suas críticas à biologia e à psicanálise em relação à mulher, e não se fulano ou beltrano não gostavam dela. Quando apresentava trabalhos sobre Sartre, por exemplo, o mar era vislumbrado, mas com Beauvoir, não. Extremamente cansativa a insistência das pessoas em se concentrar em marolas. Era de revirar os olhos reduzir uma pensadora a tretas que, se acontecessem hoje, teriam como campo de batalha o Twitter.

Olhar o tamanho do mar também é entender e aceitar nossa finitude como Thelma e Louise, do famoso filme, aceitaram ao não desafiarem o Grand Canyon. Diante da incompreensão e de uma vida sem liberdade, de mãos dadas, entregaram-se ao infinito.

Aposto que Freddie Mercury vislumbrava o oceano quando enfrentou um dos maiores empresários do meio musical que se recusou a gravar "Bohemian Rhapsody". O empresário pode ter pensado que Freddie estava desafiando o mar, quando, na verdade, integrou-se a ele e virou oceano também, parafraseando o pensador Rodney William. A música foi gravada e se tornou um sucesso, mesmo não sendo considerada comercial. Enfrentar obviedades é reconhecer o tamanho do mar, mas quem tem coragem?

"Nada realmente importa, nada realmente importa para mim. De qualquer forma, o vento sopra." Mercury termina assim a canção: é ou não é a constatação do reconhecimento de nosso tamanho? Se o vento vai soprar de qualquer forma e a imensidão do mar permanecerá, então seria melhor falar da pensadora Beauvoir, da ousadia de Mercury, de pais que ensinam lições sobre o mundo ao nos dimensionar perante a ele, de amigas que não têm medo de desfiladeiros, da generosidade do mar em permitir refrescos em dias quentes. "Dava para encher o universo da vida que eu quis para mim."

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