Djamila Ribeiro

Mestre em filosofia política pela Unifesp e coordenadora da coleção de livros Feminismos Plurais.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Djamila Ribeiro

Desculpe, Whitney

Somos subalternizadas ou somos deusas; quando seremos humanas?

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Eu fiz uma escolha política de abordar temas como racismo estrutural, sexismo, opressão de classe em meus trabalhos. Nasci em uma família de militantes, desde cedo participo de reuniões e encontros do movimento negro. Na adolescência, já atuava em organizações e coletivos e sigo na luta.

Porém, é importante se humanizar ao se permitir falar do que se tem vontade, sem se importar com aquela cobrança chata de “e aí, não vai falar sobre tal coisa?”.

Ilustração
Linoca Souza/Folhapress

Às vezes, estou tomando cerveja, e não é incomum alguém aparecer e dizer: “Nossa, racismo é pesado, né?”. Nessas horas, penso: “Muito, mas hoje eu só queria tomar uma cerveja”.

Essa imagem da mulher negra forte é muito cruel. As pessoas se esquecem de que não somos naturalmente fortes. Precisamos ser fortes porque o Estado e a iniciativa privada são omissos e violentos.

Restituir a humanidade também é assumir fragilidades e dores próprias da condição humana. Somos subalternizadas ou somos deusas. E pergunto: quando seremos humanas? Aos que não me conhecem, muito prazer, falarei de temas diversos. Aos que conhecem, sinto se decepcioná-los por não corresponder à imagem que podem ter criado. Aqui, quero, como diz a pensadora Grada Kilomba, “ter a liberdade humana de ser eu”.

Quero falar que a última diva pop foi Whitney Houston, peço desculpas aos fãs da Beyoncé. Nada contra, já a defendi em debates calorosos, só não curto muita pirotecnia. Amo como Whitney dominava o palco sozinha, sem dançarinos, no gogó. Assisti algumas vezes ao documentário sobre sua vida, chamado “Can I Be Me”, e refleti muito. “Posso ser eu?” Deve ter sido doloroso seguir o que todos queriam, empresários, família, militância e, apesar de ser genial, ser reduzida a “viciada”. 

Uma mulher triste, assim começa o documentário. Impossível não pensar na relação entre “quero ter a liberdade humana de ser eu” e “can I be me?”, apesar de uma ser afirmação e a outra, o desejo, a espera eterna pela permissão que nunca vem. Desculpe, Whitney, eles sabem o que fazem e o fazem mesmo assim. Agradeço por “The Greatest Love of All”, aliás, ouvir essa música no repeat do meu radinho Lenoxx me livrou de muitas armadilhas.

“Eu decidi há muito tempo / Nunca andar na sombra de alguém / Se eu falhei, se eu fui bem-sucedido / Pelo menos eu vivi como eu acreditei / Não importa o que possam tirar de mim / Eles não podem tirar minha dignidade / Porque o maior amor de todos / Está acontecendo comigo / Eu encontrei o maior amor de todos dentro de mim.”

Piegas? Pode ser, mas hoje não ligo. Durante muito tempo, em círculos acadêmicos, escondi meu amor por Whitney. “Lixo da indústria cultural”, eles diziam. De fato, há muita coisa ruim na era das vozes moduladas, mas como falar em bom gosto numa sociedade de massas?

Eles se esqueceram da infância pobre e do racismo, de como ela aprendeu a cantar em igrejas, do relacionamento abusivo e de que havia ali um ser humano de talento engolido por uma indústria —e que, mesmo assim, cantava com verdade. Esse é um dos grandes méritos dela. “Tá, vou ter que cantar isso aí, mas canto pra caramba e vou arrebentar.” Parece autoajuda, já me disseram. Para mim, é somente a música que me acompanhou em noites trancadas no quarto, rebobinando a fita e me acolhendo quando ninguém mais o fazia. Amo Whitney e vou defendê-la, não ligo de perder a carteirinha cult do bar de jazz. Can I be me?

Amo blues e jazz, sou capaz de ficar meses seguidos ouvindo Otis Redding, Marvin Gaye, Billie Holiday e Nina Simone, compro vinis e CDs de jazz em sebos e bazares beneficentes. Considero Cartola e Milton Nascimento os reis da música. Tenho um quadro de Clementina de Jesus na sala e me indigno por ver Mussum ser lembrado como um estereótipo, e não como o grande sambista que foi no Originais do Samba. Ouço as novas gerações e gosto de muitos, não quero ser a chata “saudosista da época que não viveu” —definição interessante, inclusive.
 

Esses dias vi um jovem de 18 anos cantando Marvin Gaye. Felipe Adetokunbo cantava lindamente “Just to Keep You Satisfied”, e a doçura da sua voz trouxe de volta a alma da tia chata “old school”, justo no momento em que estava começando a ouvir Beyoncé. Foi lindo ver um rapaz tão jovem homenageando Gaye num mundo em que ele é visto como “música chata de velho” por jovens viciados em videogame.

“It’s too late, babe”, dizia a canção. É tarde demais, Whitney. Mas lembrei que música boa não morre, renasce sempre em Adetokunbos em bares de blues.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.